
Irreverente e desafiador dos poderes instituídos – à imagem do seu criador, aliás – o Jornal D’Hoje tinha tudo para ser um fracasso editorial, numa terra tão conservadora como era então a “capital do Norte Alentejano”.
E, como se previa (e como muitos caciques locais desejaram, e trabalharam para

Um jornal que, como se costuma dizer (e porque era feito à imagem do seu criador, repito), chamava os bois pelos nomes. Ou seja: fazia jornalismo. Mesmo correndo o risco de chatear alguns poderes, locais, regionais, ou mesmo

Ora leiam este excerto do editorial do número zero (9 de Dezembro de 1999), assinado pelo director, Rui Vasco Neto:
«Em Portugal já não se usam palavras. Usam-se meias palavras para tudo, do insulto ao elogio, da ordem à sugestão.
A palavra de ordem é não hostilizar, contemporizar, dialogar, negociar, enganar, se for preciso! – mas não agitar.(...)
Ser politicamente correcto é, nos dias de hoje, tão imprescindível como o telemóvel. Quem não é não está contactável. Pior: não é contactável.(...)
Todas as suas perguntas têm cabimento no JornalD’Hoje. A nossa função é essa, perguntar e obter resposta às perguntas. E quando os senhores que se sentam na coisa pública como se fosse só deles torcerem o público nariz de desagrado pela insistência (...) há sempre uns que se calam.
Gostaria de dizer aos leitores deste jornal que há sempre uns quantos outros que perguntam outra vez o que querem saber e mais outra e outra (...) até à resposta final. E que depois vão confirmar a resposta.
Têm um nome, esses. Chamam-se jornalistas. Bem vindo ao mundo da informação regional, com qualidade nacional.»

Em Portalegre... fiéis ao objectivo de fazer informação rigorosa, sem cedências e ouvido sempre todas as partes interessadas num determinado assunto... sempre que falávamos com a “oposição”, tentávamos ouvir, também, a maioria (entenda-se, os autarcas do PS). Mas era, precisamente, essa maioria (com a própria Câmara de Portalegre à cabeça) quem colocava obstáculos ao nosso dever de informar.
Era habitual eu terminar os meus trabalhos com frases como “o Jornal D’Hoje tentou ouvir a Câmara de Portalegre, que não se mostrou disponível para prestar declarações”, ou então “na Câmara de Portalegre, disseram-nos que a única pessoa autorizada a falar sobre o assunto seria o presidente, mas só marcando entrevista, e o senhor presidente não estava disponível para entrevistas”.
Não acreditam? Julgam que estou a exagerar?Leiam, então, a seguinte história real:

Ou esta, não menos verdadeira:

Pois: era assim mesmo que as coisas se passavam!
“Desculpem lá, mas é que o senhor presidente não fala para um certo órgão de comunicação social local”. E não falava, sobre nada! Ou quase: certa noite, depois nós, Jornal D’Hoje, termos noticiado, em exclusivo uma “bronca” política que tinha acontecido na Associação de Municípios do Norte Alentejano (notícia escrita por mim, a partir de fontes que não podia identificar – mas que tinhas estado nessa reunião), mandámos um jornalista esperar o senhor presidente à porta dos Paços do Conselho. E porquê? Porque ele tinha apresentado a demiossão do cargo que ocupava na Associação de Municípios, e nós julgámos que isso devia ser explicado... aos munícipes. Ouvindo a versão que nos tinha chegado da “oposição” e, depois, o que tinha o senhor presidente a dizer sobre o mesmo
assunto.

Era essa a nossa obrigação, enquanto jornalistas.
E, se não foi a primeira vez (não tenho a certeza), foi certamente a última que o senhor presidente falou para o Jornal D’Hoje. Vejam lá o descaramento desses jornalistas (que, ainda por cima, nem são de cá) a querer incomodar o senhor presidente com perguntas incómodas!
Enfim, não “incomodávamos” só o presidente da Câmara de Portalegre.
Também “chateámos” um bocado outros detentores
de cargos políticos, como, por exemplo... ora deixa cá ver... pois, o senhor Governador Civil!... (Uma parte dessa história já foi contada aqui.) E, escusado será dizer – hummm... será mesmo escusado?... – que não nos movia qualquer intuito de “perseguição” a esses titulares de cargos públicos. Era, digo-vos mais uma vez, a nossa obrigação, enquanto jornalistas: informar, fazer serviço público.
Além disso, o Jornal D'Hoje teve ainda o mérito de recuperar - e logo na tão conservadora Portalegre - esta preciosa e esquecida tradição dos "ardinas". Pois, isso mesmo: uns jovens que, expressamente "contratados" para o efeito, e trajados a rigor, abanavam a letargia da cidade, com pregões, tipo "ólhó Jornal D'Hoje!". E isso é outra história que merece ser contada (mas que, por agora, fica aqui apenas brevemente referida, quase como nota de rodapé).
Bem, sobre a minha experiência profissional em Portalegre, havia tantas outras coisas interessantes para contar!...
Mas fica para a próxima, que esta dissertação – e esta série de artigos – já vão longas!
de cargos políticos, como, por exemplo... ora deixa cá ver... pois, o senhor Governador Civil!... (Uma parte dessa história já foi contada aqui.) E, escusado será dizer – hummm... será mesmo escusado?... – que não nos movia qualquer intuito de “perseguição” a esses titulares de cargos públicos. Era, digo-vos mais uma vez, a nossa obrigação, enquanto jornalistas: informar, fazer serviço público.

Bem, sobre a minha experiência profissional em Portalegre, havia tantas outras coisas interessantes para contar!...
Mas fica para a próxima, que esta dissertação – e esta série de artigos – já vão longas!
Só mais uma coisa, muito a propósito: eu já me tenho referido aqui ao Código Deontológico dos Jornalistas Portugueses – documento aprovado em 1993, que é um exemplo de auto-regulação profissional. Ora bem: eu, que começara a minha carreira profissional em 1992, na Rádio Baía – e que já passara por outros órgãos de comunicação social – só mesmo em Portalegre, e no Jornal D’Hoje fiquei a conhecer o texto integral. Sabem porquê? Porque o director, Rui Vasco Neto, fez questão de o afixar na sala da redacção. E mais: aconselhou-nos a ter sempre presente aquele – valioso – código de conduta.
3 comentários:
Aqui fica o texto integral do primeiro editorial do Jornal D'Hoje:
«Olho clinico
Tenho um amigo que é preto. Não, não é de cor, é preto mesmo, ébano, raça, mística, Angola. Tenho outro amigo que é velho. Não é idoso, é velho, tem os anos gravados na voz e a paciência embutida no olhar com que me adivinha a alma. É velho.
Em Portugal já não se usam palavras. Usam-se meias palavras para tudo, do insulto ao elogio, da ordem à sugestão. A coisa faz-se sempre pela metade. A palavra de ordem é não hostilizar, contemporizar, dialogar, negociar, enganar se for preciso! – mas não agitar.
O Jornal D’Hoje estreia-se nesta edição em todo o distrito de Portalegre. Vai repleto de palavras, páginas e páginas delas. É minha obrigação, como director deste projecto, dizer-vos que são todas elas palavras inteiras de sentido e afirmação e que serão sempre assim.
Ser politicamente correcto não é, decididamente, a minha vocação pessoal e profissional. No dia 6 de Janeiro próximo completam-se vinte anos que me estreei na profissão de informar, como apresentador do Jornal de Economia na RTP 1. O meu primeiro entrevistado queixou-se à produção, no final do programa, que as perguntas não tinham sido combinadas... Quinze anos depois, o Presidente da República Portuguesa fazia a mesma queixa, desta vez em directo, durante o 24 Horas, na mesma RTP. Como se tratava na altura do Dr. Mário Soares, não se limitou a queixar-se, avisou-me de dedo em riste que não respondia a mais nenhuma pergunta que eu lhe fizesse. E não respondeu mesmo.
O meu amigo que é preto ensinou-me a dor do preconceito, em palavras viv idas e sofridas na pele escura. Dizia-me ele que um branco a correr só pode ser atleta, um preto a correr só pode ser ladrão. Dizia-me ele que a gente só aprende o preconceito quando o sofre na pele, mesmo na clara. O meu amigo velho dizia-me que as pessoas só inventaram o preconceito para puderem arrumar os seus próprios medos num sítio à mão.
Com a moda das meias palavras, as coisas tornaram-se muito mais previsíveis e controláveis. Não se diz preto, diz-se de cor, não se diz velho, diz-se idoso. Ninguém dá graxa, hoje em dia: faz-se lobby. Não se matam pessoas, a tiro ou a faca: fazem-se ofertas que não se podem recusar. Na ausência de consensos usa-se o preconceito com vento a favor e tudo acaba por deslizar.
Ser politicamente correcto é, nos dias de hoje, tão imprescindível como o telemóvel. Quem não é, não está contactável. Pior: não é contactável.
Todas as suas perguntas têm cabimento no Jornal D’Hoje. A nossa função é essa, perguntar e obter resposta às perguntas. E quendo os senhores que se sentam na coisa pública como se fosse só deles torcerem o público nariz de desagrado pela insistência, têm sempre o recurso do Dr. Mário Soares: levantem, o dedo e imponham respeito. Vão ver que há sempre uns que se calam.
Gostaria de dizer aos leitores deste jornal que há sempre uns quantos outros que perguntam outra vez o que querem saber e mais outra e outra, com ou sem dedo, até à resposta final. E que depois vão confirmar a resposta.
Têm um nome, esses. Chamam-se Jornalistas. Bem vido ao mundo da informação regional, com qualidade nacional.»
Rui Vasco Neto (Editorial do Jornal D’Hoje, edição zero, Portalegre, 9 de Dezembro de 1999)
Devo acrescentar que o Jornal D'Hoje assustou tanto os poderes instituídos, naquele tempo e naquela terra (falo de Portalegre, em 1999/2000, já se sabe...) que até o jornal alinhado com o(s) pode(es) da região tentou, e conseguiu, meter um espião (sem aspas) na "nossa" redacção. (Não sei se isso lhes serviu para aprenderem alguma coisa - é que o rapaz até nem era lá muito bom... digo eu, claro!)
Nessa "guerra" de concorrência entre jornais (competição que, noutras circunstâncias, até seria saudável...) nós (e eu) tivémos (tive) o prazer de passar a perna ao tal jornal alinhado com o(s) pode(es), mais do que uma vez e, o que é melhor, no seu próprio "terreno". Foi isso que aconteceu, por exemplo, com a reunião da Associação de Municípios (referida no "post"), na qual as divergências (que deram origem à demissão do respectivo presidente) até aconteceram entre elementos da maioria PS - os tais que não falavam connosco. Nós conseguimos dar a notícia, e o jornal alinhado pelo(s) poder(es) não conseguiu, ou não o quis fazer. Toma lá! Nhãnhãnhãnhãnhãnhã!...
Claro que todo este grandioso trabalho só foi possível graças, em primeiro lugar, ao arrogante mas mmuito competente director do jornal, Rui Vasco Neto. E depois, ao "coordenador de redacção", ou seja, este vosso criado António Vitorino. (E não se impressionem com esse cargo, "coordenador de redacção": era o tipo que levava porrada do director... e da redacção! Uma espécie de "chefe de redacção", mas pior, porque nem chegava a ser chefe de coisa nenhuma...)
E, obviamente, um jornal não se faz sem jornalistas. Este era feito por estagiários de uma instituição de Ensino Superior de Portalegre, e por dois ou três profissionais já com alguma experiência. (Não me lembro é se algum deles era de Portalegre - julgo que eram todos "estrangeiros".)
Correndo o risco de me esquecer de alguém importante (a gente corre sempre esse risco), refiro agora aqueles com quem mais gostei de trabalhar: o fotógrafo Bernardino Cabaceira (que era um artista, mas com quem o director embirrava... e quando o director embirrava com alguém, estava o caldo entornado); Paulo Pedrosa (que me parecia ser o melhorzito dos estagiários); Duarte Ladeiras (que era o outro jornalista "residente" - o número dois do número dois, na hierarquia da redacção... embora não tivesse que levar a "porrada" que levava o número dois... ou seja, eu); a Sofia Lemos, ilustradora, porque era uma porreiraça (e o irmão dela, com quem bebi muitos copos, também...); a Sandra Brazinha (que eu me lembre, ela não fez muita coisa no Jornal D'Hoje, mas refiro-a só porque ela hoje trabalha também no Notícias da Zona, e eu não quero que o director, Tozé Ribeiro fique a pensar que eu sou dos que se esquecem dos amigos, eh eh eh...); e uma Anneke que era paginadora e bonitinha (além disso era meio inglesa, meio holandesa - duas coisas que, não sei porquê, mexem comigo!...).
E, para vocês verem que, de facto, o mundo é pequeno, eis que um dos meus colegas de redacção, em Portalegre, era um velho amigalhaço do Paulo Rolão (que conheci anos antes na Rádio Voz de Almada), e outra era de Sesimbra, margem sul do Tejo, perto de Almada. E fomos, pois, encontrar-nos todos a mais de 200 quilómetros de distância, já perto da fronteira (posso dizer "da fronteira com Espanha", mas isso é uma redundância: Portugal só tem fronteira com Espanha).
Esse ano em Portalegre foi, como já disse, uma experiência muito enriquecedora, em termos profissionais.
Hei-de contar-vos mais histórias sobre isso. Mas não agora, fiquem descansados. Por agora chega, e passemos adiante... mais ou menos.
António Vitorino
Boas Festas Vitorino.
Enviar um comentário