sexta-feira, dezembro 21, 2007

Jornal D’Hoje (Portalegre, 1999/2000)

O semanário Jornal D’Hoje foi um projecto do jornalista Rui Vasco Neto, feito em Portalegre, na transição do século 20 para o século 21.
Irreverente e desafiador dos poderes instituídos – à imagem do seu criador, aliás – o Jornal D’Hoje tinha tudo para ser um fracasso editorial, numa terra tão conservadora como era então a “capital do Norte Alentejano”.
E, como se previa (e como muitos caciques locais desejaram, e trabalharam para tal), acabou mesmo por ser um fracasso, em termos de viabilidade editorial. Mas foi, também, um grande exemplo do que deve ser a comunicação social local: informativa, atenta, interveniente, sem cedências nem compromissos.
Um jornal que, como se costuma dizer (e porque era feito à imagem do seu criador, repito), chamava os bois pelos nomes. Ou seja: fazia jornalismo. Mesmo correndo o risco de chatear alguns poderes, locais, regionais, ou mesmo nacionais.E era mesmo isso que se pretendia: dizer as verdades (revelá-las) sobre um dois distritos portugueses mais deprimidos e subdesenvolvidos (não porque “não gostássemos de Portalegre”- e, portanto, só tinhamos era que “voltar para a nossa terra”, como nos foi sugerido várias vezes pelos arautos da mentalidade “xenófoba” local – mas apenas porque era esse o âmbito territorial do periódico em questão). E propunha-mo-nos a revelar essas verdades, doesse a quem doesse.

Ora leiam este excerto do editorial do número zero (9 de Dezembro de 1999), assinado pelo director, Rui Vasco Neto:

«Em Portugal já não se usam palavras. Usam-se meias palavras para tudo, do insulto ao elogio, da ordem à sugestão.
A palavra de ordem é não hostilizar, contemporizar, dialogar, negociar, enganar, se for preciso! – mas não agitar.(...)
Ser politicamente correcto é, nos dias de hoje, tão imprescindível como o telemóvel. Quem não é não está contactável. Pior: não é contactável.(...)
Todas as suas perguntas têm cabimento no JornalD’Hoje. A nossa função é essa, perguntar e obter resposta às perguntas. E quando os senhores que se sentam na coisa pública como se fosse só deles torcerem o público nariz de desagrado pela insistência (...) há sempre uns que se calam.
Gostaria de dizer aos leitores deste jornal que há sempre uns quantos outros que perguntam outra vez o que querem saber e mais outra e outra (...) até à resposta final. E que depois vão confirmar a resposta.
Têm um nome, esses. Chamam-se jornalistas. Bem vindo ao mundo da informação regional, com qualidade nacional.»
Claro que, com esta declaração de intenções, o Jornal D’Hoje estava, logo à nascença, em “guerra” com os poderes então instituídos no “norte alentejano”. E que poderes eram esses? Bem, deixa cá ver se me lembro... eram 10 concelhos dominados pelo Partido Socialista (que estava então também no Governo do país), em 15 dos que compõem o distrito de Portalegre (os outros 5 eram “repartidos” pela CDU e pelo PSD – mas o PS tinha os mais importantes: Portalegre, Elvas, Ponte de Sôr, Campo Maior...). E não era apenas a “proporção” ou “desproporção”de forças que estava ali em causa: era uma lógica de concentração de poderes, de hegemonia. E de asfixiamento das vozes eventualmente rebeldes.
Em Portalegre... fiéis ao objectivo de fazer informação rigorosa, sem cedências e ouvido sempre todas as partes interessadas num determinado assunto... sempre que falávamos com a “oposição”, tentávamos ouvir, também, a maioria (entenda-se, os autarcas do PS). Mas era, precisamente, essa maioria (com a própria Câmara de Portalegre à cabeça) quem colocava obstáculos ao nosso dever de informar.
Era habitual eu terminar os meus trabalhos com frases como “o Jornal D’Hoje tentou ouvir a Câmara de Portalegre, que não se mostrou disponível para prestar declarações”, ou então “na Câmara de Portalegre, disseram-nos que a única pessoa autorizada a falar sobre o assunto seria o presidente, mas só marcando entrevista, e o senhor presidente não estava disponível para entrevistas”.

Não acreditam? Julgam que estou a exagerar?Leiam, então, a seguinte história real:




Ou esta, não menos verdadeira:



Pois: era assim mesmo que as coisas se passavam!
“Desculpem lá, mas é que o senhor presidente não fala para um certo órgão de comunicação social local”. E não falava, sobre nada! Ou quase: certa noite, depois nós, Jornal D’Hoje, termos noticiado, em exclusivo uma “bronca” política que tinha acontecido na Associação de Municípios do Norte Alentejano (notícia escrita por mim, a partir de fontes que não podia identificar – mas que tinhas estado nessa reunião), mandámos um jornalista esperar o senhor presidente à porta dos Paços do Conselho. E porquê? Porque ele tinha apresentado a demiossão do cargo que ocupava na Associação de Municípios, e nós julgámos que isso devia ser explicado... aos munícipes. Ouvindo a versão que nos tinha chegado da “oposição” e, depois, o que tinha o senhor presidente a dizer sobre o mesmo assunto.
Era essa a nossa obrigação, enquanto jornalistas.
E, se não foi a primeira vez (não tenho a certeza), foi certamente a última que o senhor presidente falou para o Jornal D’Hoje. Vejam lá o descaramento desses jornalistas (que, ainda por cima, nem são de cá) a querer incomodar o senhor presidente com perguntas incómodas!
Enfim, não “incomodávamos” só o presidente da Câmara de Portalegre.
Também “chateámos” um bocado outros detentores
de cargos políticos, como, por exemplo... ora deixa cá ver... pois, o senhor Governador Civil!... (Uma parte dessa história já foi contada aqui.) E, escusado será dizer – hummm... será mesmo escusado?... – que não nos movia qualquer intuito de “perseguição” a esses titulares de cargos públicos. Era, digo-vos mais uma vez, a nossa obrigação, enquanto jornalistas: informar, fazer serviço público.
Além disso, o Jornal D'Hoje teve ainda o mérito de recuperar - e logo na tão conservadora Portalegre - esta preciosa e esquecida tradição dos "ardinas". Pois, isso mesmo: uns jovens que, expressamente "contratados" para o efeito, e trajados a rigor, abanavam a letargia da cidade, com pregões, tipo "ólhó Jornal D'Hoje!". E isso é outra história que merece ser contada (mas que, por agora, fica aqui apenas brevemente referida, quase como nota de rodapé).
Bem, sobre a minha experiência profissional em Portalegre, havia tantas outras coisas interessantes para contar!...
Mas fica para a próxima, que esta dissertação – e esta série de artigos – já vão longas!

Só mais uma coisa, muito a propósito: eu já me tenho referido aqui ao Código Deontológico dos Jornalistas Portugueses – documento aprovado em 1993, que é um exemplo de auto-regulação profissional. Ora bem: eu, que começara a minha carreira profissional em 1992, na Rádio Baía – e que já passara por outros órgãos de comunicação social – só mesmo em Portalegre, e no Jornal D’Hoje fiquei a conhecer o texto integral. Sabem porquê? Porque o director, Rui Vasco Neto, fez questão de o afixar na sala da redacção. E mais: aconselhou-nos a ter sempre presente aquele – valioso – código de conduta.

3 comentários:

Debaixo do Bulcão disse...

Aqui fica o texto integral do primeiro editorial do Jornal D'Hoje:

«Olho clinico

Tenho um amigo que é preto. Não, não é de cor, é preto mesmo, ébano, raça, mística, Angola. Tenho outro amigo que é velho. Não é idoso, é velho, tem os anos gravados na voz e a paciência embutida no olhar com que me adivinha a alma. É velho.

Em Portugal já não se usam palavras. Usam-se meias palavras para tudo, do insulto ao elogio, da ordem à sugestão. A coisa faz-se sempre pela metade. A palavra de ordem é não hostilizar, contemporizar, dialogar, negociar, enganar se for preciso! – mas não agitar.

O Jornal D’Hoje estreia-se nesta edição em todo o distrito de Portalegre. Vai repleto de palavras, páginas e páginas delas. É minha obrigação, como director deste projecto, dizer-vos que são todas elas palavras inteiras de sentido e afirmação e que serão sempre assim.

Ser politicamente correcto não é, decididamente, a minha vocação pessoal e profissional. No dia 6 de Janeiro próximo completam-se vinte anos que me estreei na profissão de informar, como apresentador do Jornal de Economia na RTP 1. O meu primeiro entrevistado queixou-se à produção, no final do programa, que as perguntas não tinham sido combinadas... Quinze anos depois, o Presidente da República Portuguesa fazia a mesma queixa, desta vez em directo, durante o 24 Horas, na mesma RTP. Como se tratava na altura do Dr. Mário Soares, não se limitou a queixar-se, avisou-me de dedo em riste que não respondia a mais nenhuma pergunta que eu lhe fizesse. E não respondeu mesmo.

O meu amigo que é preto ensinou-me a dor do preconceito, em palavras viv idas e sofridas na pele escura. Dizia-me ele que um branco a correr só pode ser atleta, um preto a correr só pode ser ladrão. Dizia-me ele que a gente só aprende o preconceito quando o sofre na pele, mesmo na clara. O meu amigo velho dizia-me que as pessoas só inventaram o preconceito para puderem arrumar os seus próprios medos num sítio à mão.

Com a moda das meias palavras, as coisas tornaram-se muito mais previsíveis e controláveis. Não se diz preto, diz-se de cor, não se diz velho, diz-se idoso. Ninguém dá graxa, hoje em dia: faz-se lobby. Não se matam pessoas, a tiro ou a faca: fazem-se ofertas que não se podem recusar. Na ausência de consensos usa-se o preconceito com vento a favor e tudo acaba por deslizar.

Ser politicamente correcto é, nos dias de hoje, tão imprescindível como o telemóvel. Quem não é, não está contactável. Pior: não é contactável.

Todas as suas perguntas têm cabimento no Jornal D’Hoje. A nossa função é essa, perguntar e obter resposta às perguntas. E quendo os senhores que se sentam na coisa pública como se fosse só deles torcerem o público nariz de desagrado pela insistência, têm sempre o recurso do Dr. Mário Soares: levantem, o dedo e imponham respeito. Vão ver que há sempre uns que se calam.

Gostaria de dizer aos leitores deste jornal que há sempre uns quantos outros que perguntam outra vez o que querem saber e mais outra e outra, com ou sem dedo, até à resposta final. E que depois vão confirmar a resposta.

Têm um nome, esses. Chamam-se Jornalistas. Bem vido ao mundo da informação regional, com qualidade nacional.»

Rui Vasco Neto (Editorial do Jornal D’Hoje, edição zero, Portalegre, 9 de Dezembro de 1999)

Debaixo do Bulcão disse...

Devo acrescentar que o Jornal D'Hoje assustou tanto os poderes instituídos, naquele tempo e naquela terra (falo de Portalegre, em 1999/2000, já se sabe...) que até o jornal alinhado com o(s) pode(es) da região tentou, e conseguiu, meter um espião (sem aspas) na "nossa" redacção. (Não sei se isso lhes serviu para aprenderem alguma coisa - é que o rapaz até nem era lá muito bom... digo eu, claro!)

Nessa "guerra" de concorrência entre jornais (competição que, noutras circunstâncias, até seria saudável...) nós (e eu) tivémos (tive) o prazer de passar a perna ao tal jornal alinhado com o(s) pode(es), mais do que uma vez e, o que é melhor, no seu próprio "terreno". Foi isso que aconteceu, por exemplo, com a reunião da Associação de Municípios (referida no "post"), na qual as divergências (que deram origem à demissão do respectivo presidente) até aconteceram entre elementos da maioria PS - os tais que não falavam connosco. Nós conseguimos dar a notícia, e o jornal alinhado pelo(s) poder(es) não conseguiu, ou não o quis fazer. Toma lá! Nhãnhãnhãnhãnhãnhã!...

Claro que todo este grandioso trabalho só foi possível graças, em primeiro lugar, ao arrogante mas mmuito competente director do jornal, Rui Vasco Neto. E depois, ao "coordenador de redacção", ou seja, este vosso criado António Vitorino. (E não se impressionem com esse cargo, "coordenador de redacção": era o tipo que levava porrada do director... e da redacção! Uma espécie de "chefe de redacção", mas pior, porque nem chegava a ser chefe de coisa nenhuma...)

E, obviamente, um jornal não se faz sem jornalistas. Este era feito por estagiários de uma instituição de Ensino Superior de Portalegre, e por dois ou três profissionais já com alguma experiência. (Não me lembro é se algum deles era de Portalegre - julgo que eram todos "estrangeiros".)

Correndo o risco de me esquecer de alguém importante (a gente corre sempre esse risco), refiro agora aqueles com quem mais gostei de trabalhar: o fotógrafo Bernardino Cabaceira (que era um artista, mas com quem o director embirrava... e quando o director embirrava com alguém, estava o caldo entornado); Paulo Pedrosa (que me parecia ser o melhorzito dos estagiários); Duarte Ladeiras (que era o outro jornalista "residente" - o número dois do número dois, na hierarquia da redacção... embora não tivesse que levar a "porrada" que levava o número dois... ou seja, eu); a Sofia Lemos, ilustradora, porque era uma porreiraça (e o irmão dela, com quem bebi muitos copos, também...); a Sandra Brazinha (que eu me lembre, ela não fez muita coisa no Jornal D'Hoje, mas refiro-a só porque ela hoje trabalha também no Notícias da Zona, e eu não quero que o director, Tozé Ribeiro fique a pensar que eu sou dos que se esquecem dos amigos, eh eh eh...); e uma Anneke que era paginadora e bonitinha (além disso era meio inglesa, meio holandesa - duas coisas que, não sei porquê, mexem comigo!...).

E, para vocês verem que, de facto, o mundo é pequeno, eis que um dos meus colegas de redacção, em Portalegre, era um velho amigalhaço do Paulo Rolão (que conheci anos antes na Rádio Voz de Almada), e outra era de Sesimbra, margem sul do Tejo, perto de Almada. E fomos, pois, encontrar-nos todos a mais de 200 quilómetros de distância, já perto da fronteira (posso dizer "da fronteira com Espanha", mas isso é uma redundância: Portugal só tem fronteira com Espanha).


Esse ano em Portalegre foi, como já disse, uma experiência muito enriquecedora, em termos profissionais.

Hei-de contar-vos mais histórias sobre isso. Mas não agora, fiquem descansados. Por agora chega, e passemos adiante... mais ou menos.

António Vitorino

Luis Eme disse...

Boas Festas Vitorino.