sexta-feira, dezembro 14, 2012

O "fim do mundo" e o jornalismo parolo

Notícia encontrada no site do jornal Público: "Guitarrista dos Radiohead espera fim do mundo no Brasil. Johnny Greenwood está a morar num hotel situado no interior de São Paulo, há um mês, e aguarda pela profecia Maia, que aponta 21 de dezembro como dia do apocalipse."

A notícia sobre a estadia do músico no Brasil "à espera do fim do mundo" (notícia que não apareceu apenas neste jornal, como é óbvio) já foi desmentida entretanto.

Mas não é isso o que me interessa.

Há quem acredite que os Maias previram o fim do mundo, tal como há quem acredite que existe o Pai Natal (o Papai Noel, para os amigos no Brasil) ou os unicórnios, ou o Monstro de Loch Ness (se bem que este último não seja completamente absurdo). O guitarrista dos Radiohead teria todo o direito de estar mal informado e agir de acordo com os mitos em que acredita - se fosse esse o caso.

O que me parece grave - e estúpido - é que os jornalistas acreditem nisso.

Porque "a profecia Maia, que aponta 21 de dezembro como dia do apocalipse" não é, na verdade, nenhuma profecia dos Maias: é um guião de um filme de Hollywood!

Que as pessoas nesta "sociedade da informação" estejam tão mal informadas a ponto de confundirem produções de Hollywood ou tretas do facebook com a realidade... enfim, é uma tristeza, mas já me vou habituando a isso.

Mas os jornalistas!? Os que têm a obrigação de confirmar o que lhes é dito antes de passarem essa informação ao público?...

E note-se que esta notícia - que apresento como mero exemplo, sem querer fazer uma crítica especificamente ao jornal ou à jornalista em questão - está longe de ser caso único! Nos últimos dias vi multiplicarem-se em respeitáveis órgãos de comunicação, títulos como "os maias dizem que afinal 21 de dezembro não é o fim do mundo" (como se alguma vez tivessem dito que era!).
Substituiu-se o trabalho jornalístico sério, que procura fontes credíveis e confirma a informação antes de a publicar, por mitos cinematográficos e memes da internet? É nisto que estamos?

Não há pachorra para tanta parolice e tanto folclore!

Hei-de voltar a este assunto, que merece ser melhor analisado. Um dia destes, depois do "fim do mundo".

quarta-feira, dezembro 05, 2012

Joaquim Benite (1943 - 2012)

"O teatro, sendo também uma indústria e um comércio é, acima de tudo, uma forma de arte. Tem de haver espaços de liberdade para todos os criadores. Mas nós vivemos num país onde muitas vezes existe um grande sectarismo de análise, onde as pessoas ainda puxam muito pelos seus próprios interesses.  

Eu penso que é da confrontação de experiências, de linguagens e das várias formas de interpretar o mundo (porque no fundo é disso que se trata) que pode nascer algo de positivo. É assim que nos enriquecemos e modificamos: o contacto entre artes gera conexões mútuas em que todos beneficiamos.

Penso também que o teatro é uma prática que se exerce no campo da moralidade, não no sentido religioso do termo, mas no que diz respeito aos comportamentos e maneiras de viver. Não se faz espectáculos se não com o intuito de influir no gosto, no pensamento, nos costumes das pessoas"


Entrevista à revista Sem Mais, em Julho de 1996
texto completo aqui:
http://vitorinices2.blogspot.pt/2012/12/joaquim-benite-em-1996.html

domingo, novembro 11, 2012

"Uma cultura da violência", Luísa Costa Gomes

Eis um texto da escritora Luísa Costa Gomes, publicado há 10 anos na revista Notícias Magazine. Para pensar: o que aprendemos, ou desaprendemos, no espaço de uma década, depois de termos sido devidamente alertados?

Nem é preciso estar a chamar outra vez a atenção para o tema, porque todos sabemos que a violência e o espectáculo da violência são inevitáveis. Parece que nunca houve na História tantas coisas inevitáveis. São as tais coisas que são mesmo assim, como a miséria, a guerra, a doença, a injustiça, a morte - factos da vida natural. É, portanto, um daqueles temas que suscitam uma primeira indignação e depois um encolher de ombros, diante do permanente caldo de pornografia e tiros avulsos, já a caminho de se tornar banal. Não se pode dizer nada contra, não é chique. É moralismo. E todos sabemos que o moralismo é sempre bacoco. Talvez tenhamos, enquanto sociedade, uma curiosidade laboratorial de saber o que vai sair daqui? Como é que as gerações vão sobreviver emocionalmente? Como é que os miúdos, que as gerações responsáveis não sabem, nem querem, nem têm a coragem moral de proteger, se hão-de couraçar por dentro contra a brutalidade que lhes entra constantemente pelos olhos?

Impotentes diante do que nos despejam dentro de casa: concursos e séries e programas baixos e baratos. E o mais barato é o pontapé. O pontapé é que rende. Psicólogos trabalham para nos convencer de que, no fundo, somos todos bastante maus e gostamos de ver gente a apanhar pancada e que quanto mais depressa o assumirmos e nos desculpabilizarmos em relação a esses impulsos naturais (perdoarmo-nos a nós próprios é a expressão canónica), mais depressa andaremos felizes e descontraídos. Sociólogos, por esta vez, concordam com psicólogos. O espectáculo da violência e a glorificação do murro não fazem mal a ninguém, até porque é comummente sabido que as crianças são burras e não têm mecanismos de identificação e de imitação e não percebem a moral dos programas em que se encoraja a resolver os problemas todos recorrendo ao argumento da força bruta. O espectáculo da violência serve apenas, dizem - diziam, que há agora já vozes tímidas discordantes - e comprovam com estudos estatísticos feitos na América, para uma saudável catarse colectiva, espécie de terapia social, em que os pobres e desvalidos, pelo menos em fantasia, atiram sobre os ricos e poderosos, ou quem quer que lhes passe diante da mira. Hoje, alguns começam a pôr em causa esta teoria que dominou, de forma paternalista, as décadas anteriores.

Há ainda cândidos que imaginam que é possível desligar a televisão, que aquilo a que fechamos a porta não nos entra pela janela. Que é possível não ver filmes, não comprar jogos de vídeo, manter-se alheado e puro, longe de uma realidade que é formatada pelos parâmetros mediáticos em que a violência reina suprema. Atiramos todas estas coisas para cima dos miúdos, esperamos talvez que eles tenham uma força que nos falta. Dizem que o aparelho de televisão traz um botão de ligar e desligar. Ainda não dei por ele. Pelo contrário. Quanto menos televisão se quer ver, menos aparelhos de televisão se quer ter, mais eles arranjam forma de se multiplicarem e de povoarem a casa toda. Nunca chegam. São permanente objecto de discórdia. Não dizia alguém que se reconhece a estrutura duma família quando se sabe quem comanda o comando da televisão? Mas nunca chegam os ecrãs, os canais, os programas. A gente desune-se nas escolhas. Vai cada um para o seu canto comportar-se à maneira da sua fatia de público-alvo. Até em si mesmo, o espectador encontra-se o mais das vezes dividido. A sua melhor parte quer ver um programa interessantíssimo sobre os Romanos e a parte pior puxa-o para uma série americana de piada fácil e risos pré-fabricados. Não resiste, porque havia de resistir? Trata-se de entretenimento, a televisão não faz pedagogia. A não ser a da instauração da dependência em relação ao entretenimento. Ou seja, da reconfirmação do domínio da violência.

Luísa Costa Gomes

Texto publicado na revista Notícias Magazine
em 19 de Maio de 2002

quinta-feira, outubro 25, 2012

Portugal no seu melhor

Encontrei ontem este papelinho no quintal da casa onde estou a morar. Não sei se veio parar aqui por engano, ou se é mesmo para mim.

Se for para mim, não tenho grande coisa a dizer. Não me apetece perder tempo com tentativas de intimidação cobardes e ridículas. Tenho mais que fazer.

No entanto, se houver alguma verdade nisto, se alguém estiver a "colher" informação sobre mim, esclareço já o meu amiguinho (ou amiguinha) anónimo (e a quem mais se interesssar) que não vejo porque hei-de ficar preocupado ou ter "cuidado".

Aliás, dou uma ajuda para esclarecer as vossas dúvidas.

Vejam aqui, nesta entrevista publicada no livro "Almada - Gente Nossa, volume 3", de Artur Vaz:
http://vitorinices.blogspot.pt/p/antonio-vitorino-entrevistado-por-artur.html

Não há mistério nenhum sobre quem sou ou o que faço. Parem lá de fazer "filmes", ok?

quarta-feira, outubro 17, 2012

A teoria dos usos e gratificações explicada às criancinhas

Era uma vez um galinheiro cheio de galinhas. E era uma vez uma raposa que inventava truques e mais truques - qual deles o mais arguto e sofisticado! - para se fazer passar por amiga das galinhas. Fazia-o, por exemplo, contando-lhes bonitas e comoventes histórias sobre a solidariedade entre raposas e galinhas para, assim, conseguir ganhar a sua confiança, entrar no galinheiro e papá-las.

Ora, as galinhas (que não eram tão estúpidas quanto a raposa tenta fazer crer) não se deixavam papar facilmente. Desconfiavam dos truques da raposa. Algumas delas eram mesmo especialistas em estudar esses truques, investigar o que andava a raposa a tramar, desvendar as intenções ocultas nas bonitas e comoventes histórias.

Depois, passavam essa informação ao galinheiro. E, assim, as galinhas (que não eram tão estúpidas quanto a raposa tenta fazer crer) lá se desenrascavam a evitar que a raposa entrasse no galinheiro e as papasse. Conheciam-lhe os truques.

Até que, num belo dia, uma galinha vinda de um galinheiro muito muito distante, com fama de ser muito muito lúcida, revolucionária e visionária, chegou ao nosso galinheiro, reuniu as nossas galinhas e disse-lhes:

- Camaradas galinhas! Até hoje temo-nos preocupado em demasia com o estudo da raposa, dos seus truques e das suas mentiras, como se fossem elas o que determina a nossa vida, como se não tivéssemos nós, camaradas galinhas, a capacidade de resistir e não assumir as atitudes que a raposa nos tenta impôr para que a aceitemos como uma de nós e a deixemos entrar no galinheiro para nos papar. Isso, camaradas galinhas, são crenças de uma escola antiquissima, que até pode ser muito interessante mas que, quando relida, tudo reduz a objecto de propaganda. Pois, mas não o é! Há mais vida para além da propaganda!

Vendo que tinha captado a atenção do galinheiro, a nossa visionária e revolucionária galinha continuou a explicar as suas ideias:

- Nós, camaradas, não somos uma massa inerte de receptores das mentiras da raposa! Sabemos descodificá-las e utilizamo-as de acordo com os nossos propósitos, e não com os propósitos da raposa. Temos consciência suficiente dos truques. E mais: digo-vos, camaradas galinhas, que não existe apenas uma raposa! Não, camaradas! As raposas são várias, competindo entre si para captar a nossa simpatia a a nossa atenção. E somos nós que, ao escolher ouvir a mensagem desta ou daquela raposa, escolhemos livremente a história que mais nos interessa ouvir. O importante não é o que as mentiras da raposa fazem de nós, mas sim o que nós fazemos com as mentiras da raposa. Devemos, por isso, suspender os juízos de valor acerca do significado cultural das histórias da raposa. Até hoje temo-nos preocupado apenas com o estudo da raposa. Mas a questão é estudarmo-nos a nós próprias! O tempo da ingenuidade e do obscurantismo está a chegar ao fim. Entremos na nova era de luz e sabedoria. Se nos conhecermos a nós próprias seremos imbatíveis! Galinhas unidas jamais serão galinhas fritas!

O galinheiro, conquistado por tal argumentação - que parecia, de facto, muito razoável - emocionou-se. E, logo ali, reunido em assembleia popular de galinhas, elaborou uma moção - aprovada por unanimidade e aclamação - no qual todas as galinhas se comprometiam, de esse dia em diante, a dar mais atenção a si próprias e menos à raposa (ou raposas, de acordo com o novo conceito, a que chamaram teoria dos usos e gratificações).

E foi o que fizeram. De aí em diante menosprezaram os estudos sobre a raposa. E multiplicaram os estudos sobre a forma como recebiam, assimilavam e descodificavam as mensagens da raposa (ou raposas, de acordo com a nova teoria), como as escolhiam ou rejeitavam em função das suas próprias necessidades e das gratificações que esperavam obter com elas.

E publicaram todos esses estudos, dentro e fora do galinheiro.

E entretanto, a raposa (sim, nesta fábula é de facto só uma raposa, apesar de as galinhas estarem agora convencidas do contrário, possivelmente porque um dos novos truques preferidos da raposa é aparecer junto do galinheiro usando várias máscaras e disfarces - há até quem diga que aprendeu a disfarçar-se de galinha vinda de um galinheiro muito muito distante - e de terem perdido, as galinhas, a capacidade de olhar para lá do seu agora limitado horizonte de análise), que é feito dela?

Pois, a raposa agora passa a maior parte do seu tempo entretida a ler os estudos que as galinhas fizeram sobre o comportamento das galinhas perante os truques da raposa. Conhece-as melhor do que nunca. Sabe quais são os seus pontos fracos e sabe como as provocar para baixarem as defesas do galinheiro. E elas cada vez sabem menos sobre a raposa. O que só pode ser bom, obviamente. Para a raposa.

Moral da fábula? Citando um antigo general chinês: "conhece o teu inimigo e conhece-te a ti próprio; se conheceres o teu inimigo como te conheces a ti próprio tens a vitória garantida; se apenas te conheceres a ti próprio tens as mesmas hipóteses de vitória que tem o teu inimigo; mas se não te conheces a ti próprio nem ao teu inimigo, a tua derrota é certa".

sexta-feira, agosto 24, 2012

"A Violência na televisão e o bom pastor"


 (Texto de António-Pedro Vasconcelos, escrito em 1994 e publicado no livro "Serviço Público, Interesses Privados - o que está em causa na polémica da RTP", edição Oficina do Livro, Lisboa, 2003. As notas de rodapé são minhas.)


Com um humor desenvolto, o primeiro-ministro (1) afirmou, há dias, que se recusava a "tributar o disparate". E acrescentou, sorridente, qualquer coisa como isto: "se o disparate pagasse imposto, eu deixava de ter problemas com o Orçamento". Esqueceu-se apenas de mencionar que, nesse caso, teria que começar por tributar os membros do seu próprio Governo.

A iniciativa do buliçoso ministro Marques Mendes (2) de propor um pacto de conduta às televisões, é um belo exemplo de tolice e de demagogia. Quando a opinião pública se agita, como foi agora o caso, à volta de um problema que ele considera merecer a sua alta intervenção, o ministro, em pessoa, intervém: foi assim com os arquivos da RTP, por exemplo, em que despachou com firmeza as ordens absurdas e levianas que apenas formalizaram a anarquia com o selo avulso do disparate.

Decidiu agora o ministro da Propaganda mostrar-se sensibilizado, durante uns dias, com o problema da violência na televisão, partilhando as inquietações públicas da esposa do Presidente da República (3), com quem não convém abrir frentes gratuitas de combate político. Tomou chá com essa inteléquia chamada sociedade civil e posou para a comunicação social com os 3 responsáveis dos 4 canais (4), aconselhando-os, com a autoridade de um bom pastor, a que doravante moderassem as imagens de violência nos telejornais, evitassem traumatizar as crianças e se abstivessem de mostrar filmes com sádicas exibições de tortura física e lascivas contorções de prazer sexual.

O assunto ficou por aqui e por aqui ficará. Porquê?

Primeiro, porque nem o actual Ministro nem o ex-Primeiro-Ministro e o Ex-ministro da Educação, hoje promovidos a presidentes de canais privados (5), estão genuinamente preocupados com o assunto, e estes, mesmo que estivessem, não iam perder audiências só para satisfazer as generosas preocupações da Dr.ª Maria Barroso, nem que ela fosse a Madre Teresa de Calcutá.

Segundo, porque, tal como foi proposto, o problema de combater a violência na TV é um enunciado vazio, e por isso tão consensual e inútil como proclamar que se deve combater o insucesso escolar ou eliminar a corrupção.

A melhor maneira de evacuar um problema, já se sabe, é reduzi-lo a uma fórmula simples, nobre e atraente, mas evasiva. Quando o Ministro gravemente se dispõe a mostrar-se preocupado com "a violência na televisão" está a solenizar um equívoco, deixando que se misturem no mesmo saco roto, vários e complexos problemas.

O primeiro é que a televisão comercial (isto é, a televisão que nos chega gratuitamente a casa e que nos é, de facto, paga pelos anunciantes a troco de comprarmos os seus produtos), é em si uma violência. A sua regra é atrair audiências, isto é, agradar às maiorias, o que é, no entender desse fino intérprete das pulsões populares que é Emídio Rangel, a forma suprema da democracia. A partir daí, vale tudo: é bom o que rende anúncios.

O segundo, é que convém, metodicamente, separar o telejornal do resto da programação, e que a informação está, por lei (e por imposição da directiva comunitária) impedida de ser interrompida por anúncios em blocos inferiores a meia-hora. Coisa que nenhum canal cumpre, mas a que o Governo zelosamente fecha os olhos (6).

Que importância tem isto? Tem toda. Desde que a informação pode servir também para atrair comerciantes, a sua função perverteu-se: tem que render. E o que rende é o pivot avisar, por exemplo, antes do bloco publicitário: "não saia daí porque na segunda parte vamos mostrar-lhe a reportagem do pai que matou o filho à sachada"; ou: "não perca, logo a seguir ao intervalo, as imagens do atentado suicida em Jerusalém, cujo primeiro balanço aponta para 20 mortos carbonizados"; ou então: "depois da publicidade, vamos ainda falar-lhe do último escândalo da família real inglesa". (ver nota 6)

Se a lei impede a interrupção dos serviços informativos por blocos publicitários, em períodos inferiores a meia-hora (e, a meu ver, a própria limitação horária já é uma cedência), não é por um capricho malévolo do legislador, mas porque é essencial que a informação não seja condicionada por qualquer perversão comercial, mas apenas pela preocupação de assegurar ao público a melhor qualidade do serviço. Foi isso que fez, por exemplo, a BBC. Hoje, se a informação televisiva em Portugal se degradou a níveis preocupantes foi, em parte, porque o Ministro que a tutela tem ao seu dispor um instrumento dissuasor - a lei - que, por ignorância ou hipocrisia, se coíbe de usar ou de mandar aplicar.

Dito isto, condenar a violência da informação, sem algumas cautelas, é abrir a porta às mais graves perversões. Onde está a violência? No que acontece ou no que se transmite? No que se passou no cemitério de Díli ou na sua exibição? Nas imagens transmitidas em directo pela CNN para o mundo inteiro, da excisão do clitóris numa criança muçulmana, ou nessa hedionda mutilação, corrente entre os seguidores de Maomé, e a que o Ocidente fecha os olhos? O que é chocante: o que se passa ou o que se mostra?

Não fazer esta elementar distinção é querer resolver o problema da violência, que é antigo como o mundo (haverá alguma coisa mais violenta do que a Bíblia?), imitando os tiranos da antiguidade, que mandavam cortar as mãos aos mensageiros das más notícias.

Na televisão salazarista não havia violência, como não haveria na de Ceausescu, porque ela repousava sobre uma violência absoluta que era a privação geral da liberdade.

O problema, na informação como no resto, não está em mostrar a violência - o que é legítimo e necessário, por vezes mesmo pedagógico - mas na sua possível obscenidade, e esse é o risco que corre com frequência a televisão comercial e a imprensa de escândalos (mas essa, ao menos, está identificada).

Quando as cadeias americanas se batem para comprar o direito de transmitir uma execução em directo, ou uma televisão brasileira filma o suicídio de uma jovem em directo e transmite, também em directo, a notícia aos pais, estamos no domínio da obscenidade, isto é da exibição despudorada da morte ou da dor de alguém, sem outra justificação que não seja a exploração mórbida do voyeurismo de todos nós. Pela simples e demolidora razão de que isso vende (7).

Digamo-lo sem rodeios: a programação das televisões comerciais é, sobretudo em países sem recursos como o nosso, tendencialmente obscena. Obsceno foi, por exemplo, o "Perdoa-me" como o é o "All you need is love"(8), porque exploram sentimentos ingénuos para os transformar em receitas publicitárias. É barato e dá dinheiro, e o dinheiro não tem moral.

Outra coisa é a ficção. Tentar eliminar ou neutralizar a violência que toda a ficção traz consigo é abrir a porta a todas as censuras: não há nada mais violento que Édipo (que mata o pai e dorme com a mãe) ou Medeia (que mata os filhos), para não falar das tragédias de Shakespeare (que são um inventário de todos os crimes e perversões e de todas as paixões ruins). Ignorá-lo é ignorar a função catártica da ficção, sobre a qual o mundo ocidental fundou a sua superioridade sobre as civilizações que a reprimiram.

Dito isto, e para tentar contribuir utilmente ao debate, termino com duas sugestões sumárias:

1 - A televisão generalista tem uma componente informativa e outra de programação, diversificada. Os jornalistas, como os médicos ou os advogados, devem reger-se por códigos deontológicos que fundam a sua própria credibilidade e a credibilidade dos órgãos de informação onde trabalham. Além disso, existe a lei que proíbe os abusos de liberdade de imprensa. Aplique-se.

2 - Na informação, como no resto, prefiro sempre os riscos da liberdade à ditadura dos censores. A lei nº 58/90 que define o regime da actividade da televisão em Portugal (nomeadamente, o art.º 6º, o art.º 17º e o art.º 28º, nº4, que remete para o art.º 11º, nº5 da Directiva), e que o Ministro persiste em ignorar, chega para prevenir os abusos da programação. Arranje-se, isso sim, quem a aplique. Com celeridade e rigor.


António-Pedro Vasconcelos

28 de Novembro de 1994



Notas:

(1) Cavaco Silva, primeiro-ministro entre 1985 e 1995.

(2) Em 1994, Marques Mendes era ministro-adjunto do primeiro-ministro.

(3) Maria Barroso. O Presidente da República era, então, Mário Soares.


(4) Na época existiam em Portugal apenas canais generalistas, emitidos em sinal aberto via feixe hertziano. A RTP (canal 1 e 2), a SIC e a TVI.

(5) Respectivamente, Pinto Balsemão (SIC) e Roberto Carneiro (TVI)

(6) Neste aspecto, a realidade ter-se-á alterado desde 1994, mas apenas no que diz respeito à televisão generalista emitida em canal aberto ou, eventualmente, aos canais temáticos transmitidos por cabo. Na internet a situação é pior ainda do que a descrita neste texto. Quando se tenta aceder a vídeos com notícias é frequente que esses vídeos sejam precedidos de anúncios publicitários, sem que o utilizador (cidadão transformado em consumidor à força) tenha, pelo menos, a opção de ignorar essa publicidade e ir directamente à notícia que lhe interessa.

(7) Hoje, na internet, multiplicam-se os sites que exploram de forma "despudorada" esses fenómenos, "sem outra justificação que não seja a exploração mórbida do voyeurismo de todos nós". São sites que recolhem imagens de assassinatos, execuções e torturas e as publicam, na internet aberta e sem restrições. Mas, mais do que isso, tentam vender o seu produto (esses vídeos) em canais populares como o youtube. Fazem-no de forma indirecta: convidado pessoas com contas no youtube (normalmente jovens ou mesmo crianças) a filmarem-se a ver esses vídeos, a meterem a sua reacção no youtube, de preferência com "link" para o site onde tais vídeos se encontram disponíveis. Dessa forma contornam as regras do youtube e ganham novos "clientes" (e os seus alvos são jovens e crianças - repito para que não fiquem dúvidas); ao aumentar o número de visualizações e ao tornar o site mais visível tornam-no também mais apetecível para os anunciantes. É um ciclo de negócio que se alimenta de morte, degradação e absoluta falta de respeito pela dignidade humana.

(8) Programas populares de grande audiência na televisão privada em Portugal durante a primeira metade da década de 90. Compare-se a "receita" destes programas ("exploram sentimentos ingénuos para os transformar em receitas publicitárias") com muitos conteúdos que circulam hoje na internet, particularmente em "redes sociais" como o facebook, onde se exibem marcas comerciais de forma aparentemente não comercial, disfarçada de piadas políticas ou nobres causas humanitárias - um fenómeno que os publicitários conhecem como "marketing viral".

terça-feira, junho 26, 2012

Walter Benjamin sobre o teatro épico

"A interrupção da acção, que levou Brecht a designar o seu teatro como épico, suprime permanentemente uma ilusão no público. Tal ilusão é inútil para um teatro que queira tratar os elementos da realidade no sentido de uma ordem de experiências.

As situações estão no fim, e não no princípio, desta experiência. Situações que, observadas por qualquer aspecto que seja, são sempre as nossas. Elas não se tornam mais próximas do espectador, mas sim mais afastadas. Ele reconhece-as como as situações verdadeiras, não com arrogância, como no teatro do naturalismo, mas com espanto. O teatro épico não reproduz, portanto, situações, acabando por as descobrir.

A descoberta das situações cumpre-se com a interrupção das acções. Mas aqui, a interrupção não tem um carácter excitante, mas sim uma função organizativa. Ela imobiliza o decurso da acção, levando o espectador a tomar posição relativamente ao acontecimento e o actor a tomar posição relativamente ao seu papel.

Com um exemplo quero mostrar-vos como, com a sua descoberta e concepção do gesto, mais não representa do que uma reconversão de métodos decisivos de montagem, de rádio e de cinema, transformando processos frequentemente em moda, numa acção humana.

- Imaginem uma cena de família: a mulher está pronta a pegar num objecto de bronze para o atirar à filha, o pai está prestes a abrir a janela para pedir socorro. Neste momento, entra um estranho. A acção é interrompida; o que em vez dela surge é a situação em que esbarra o olhar do estranho: semblantes perturbados, janela aberta, mobiliário destruído.

Mas há um outro olhar perante o qual, mesmo as cenas mais habitáveis da existência actual, não se apresentam muito diferentemente. É o olhar do dramaturgo épico.

Ele contrapõe as obras de arte dramática ao laboratório dramático. Regressa, de forma inovadora, à velha particularidade do teatro - o expor aquilo que está presente. O ponto central das suas experiências é o homem. O homem de hoje, reduzido e arrefecido num ambiente glacial. Mas como só dispomos deste, temos interesse em conhecer. É submetido a provas, a apreciações. O que resulta é o seguinte: a acção não é alterável nos seus pontos altos, através da virtude ou da decisão, mas sim no rigoroso fluxo habitual, através da razão e do exercício.

Construir, a partir dos mais ínfimos elementos de tipos de comportamento, aquilo que na dramaturgia aristotélica se chama "actuação", eis o sentido do teatro épico. Os seus meios são, pois, mais modestos do que os do teatro tradicional; os seus objectivos também."


Walter Benjamin, em "O Autor Enquanto Produtor" (1934)

Foto: imagem de "Oratória", espectáculo do Teatro da Cornucópia, a partir de textos de Brecht, Goethe e Gil Vicente, levado à cena em 1983 no Teatro do Bairro Alto.
http://www.teatro-cornucopia.pt/

sábado, junho 23, 2012

ÚLTIMA HORA: Grécia sai do Euro!

ÚLTIMA HORA: Angela Merkel demite-se, o presidente grego demite o governo e convida o Syriza para formar novo executivo, Durão Barroso diz que o Euro afinal não foi boa ideia porque bem vistas as coisas só prejudica as massas trabalhadoras e impede a tomada de consciência revolucionária da aliança operária-camponesa e do proletariado europeu, o BCE concorda com o presidente da Comissão e marca reunião de urgência do Clube Bilderberg com a presença de dirigentes do Banco Mundial, do Pentágono e de Vladimir Putin para decidirem a criação de uma Nova Ordem Mundial na qual o poder será retirado aos grandes grupos económicos, devolvido ao povo e exercido através de assembleias de operários, camponeses e soldados. Ah, e para que o plano resulte, os árbitros do Alemanha-Grécia são militantes do Syriza.

Eu não tenho jeito nem paciência para trollar ninguém. Mas não resisti a fazer estas piadas (a do título e a do texto acima) mais ou menos óbvias, e a publicá-las naquele site norte-americano a que chamamos "rede social" (sim, esse, o facecoiso).

A chatice é que houve quem acreditasse. Ou, pelo menos, admitisse que podia ser verdade.

Agora digam lá que eu não tenho razão para estar preocupado com a facilidade com que as pessoas se deixam manipular e acreditam facilmente nas tretas que lhes contam desde que pareçam ir de encontro às expectativas que alimentam.

Parece que para muitas pessoas a realidade - ou pelo menos a realidade não mediatizada - deixou de ser uma opção desejável - tal como se verifica nos casos em que, ao verem num écran (de computador, por exemplo) algo que as incomoda, desviam o olhar... para outro écran (por exemplo, do telemóvel).

Ilusões perigosas...

sexta-feira, junho 22, 2012

Para memória futura

 "Não é admissível existir estacionamento ilegal nas proximidades de um parque de estacionamento" - frase do vereador Rui Jorge Martins (vereador da Câmara Municipal de Almada, responsável pela ECALMA - Empresa Municipal de Estacionamento e Circulação, que tem a ser cargo a fiscalização e aplicação do Código da Estrada, com poderes de polícia, em todas as vias sob jurisdição do município). Notícia do Jornal da Região, edição Almada, em 25 de Abril de 2012.

As fotos seguintes são da Rua Leonel Duarte Ferreira - rua onde existe um parque de estacionamento da Câmara gerido pela Ecalma (e que é o maior parque de estacionamento municipal da cidade) além de vários outros locais onde se pode estacionar sem incomodar os peões e sem infringir o código da estrada. As imagens são de Junho de 2012. Mas poderiam ser de qualquer outra data, já que isto acontece - nas barbas da Ecalma! - todos os dias e a toda a hora.  E sim, a Ecalma e a Câmara de Almada têm conhecimento desta situação, mas recusam-se a resolvê-la.



Conforme assinalado no título, isto é um pequeno apontamento para memória futura. O problema não é novo e, pelos vistos, não será resolvido em breve. Apesar de - repito - a Câmara e a Ecalma estarem devidamente informadas. Até já fingiram que resolviam o problema... Mas parece que foi só para a fotografia (cf. artigo que escrevi em 18 de Outubro de 2011 e artigos anteriores a esse sobre o mesmo assunto).

sexta-feira, junho 15, 2012

Noam Chomsky num desenho

As "10 Estratégias De Manipulação" da opinião pública através dos meios de comunicação, de Noam Chomsky, resumidas num "desenho" que alguém teve a feliz ideia de fazer e que está a circular na internet.


O texto das "10 estratégias", por extenso:

1. A estratégia da distração. O Elemento primordial do Controle Social é a estratégia da distração que consiste em desviar a atenção do público dos problemas importantes e mudanças decididas pelas elites políticas e económicas, mediante a técnica do diluvio ou inundação de continuas distrações e de informações insignificantes. A estratégia da distração é igualmente indispensável para impedir o público de se interessar por conhecimentos essenciais, na área da ciência, da economia, da psicologia, da neurobiologia e da cibernética. “Manter a atenção do público distraída, longe dos verdadeiros problemas sociais, cativada por temas sem importância real. Manter o público ocupado, ocupado, ocupado, sem nenhum tempo para pensar; de volta à granja como os outros animais (cita o texto “Armas silenciosas para guerras tranquilas”).

2. Criar problemas e depois oferecer soluções. Este método também é chamado “problema-reação-solução”. Cria-se um problema, uma “situação” prevista para causar certa reação no público, a fim de que este seja o mandante das medidas que se deseja fazer aceitar. Por exemplo, deixar que se desenvolva ou intensifique a violência urbana, ou organizar atentados sangrentos, a fim de que o público seja o mandante das leis de segurança e políticas em prejuízo da liberdade. Ou também: criar um crise económica para fazer aceitar como um mal necessário o retrocesso dos direitos sociais e o desmantelamento dos serviços públicos.

3. A estratégia de gradualidade. Para fazer que se aceite um medida inaceitável, basta aplica-la gradualmente, a conta gotas, por anos consecutivos. É dessa maneira que condições socioeconomicas radicalmente novas (neoliberalismo) foram impostas durante as décadas de 1980 e 1990: Estado mínimo, privatizações, precariedade, flexibilidade, desemprego em massa, salários que já não asseguram entradas decentes, tantas mudanças que teriam provocado uma revolução se houvessem sido aplicadas de uma só vez.

4. A estratégia de diferir. Outra maneira de aceitar uma decisão impopular é apresenta-la como “dolorosa e necessária”, obtendo a aceitação pública, neste momento, para uma aplicação futura. É mais fácil aceitar um sacrifício futuro que um sacrifício imediato. Primeiro, por que o esforço não é empregado imediatamente. Logo, por que o público, a massa, tem sempre a tendência de esperar ingenuamente que “tudo irá melhorar amanhã” e que o sacrifício exigido poderá ser evitado. Isso da mais tempo ao público para se acostumar à ideia da mudança e de aceitá-la com resignação quando chegue o momento.

5. Dirigir-se ao público como criaturas de pouca idade. A maioria da publicidade dirigida ao grande público utiliza discurso, argumentos, personagens e entoação particularmente infantis, muitas vezes próximos da demência, como se o espectador fosse um criatura de pouca idade ou um deficiente mental. Quanto mais se tenta enganar o telespectador, mais se tende a adotar um tom infantilizante. Por quê? Se um se dirige a uma pessoa como se ela tivesse a idade de 12 anos ou menos, então por razão da sugestionabilidade, ele tenderá, com certa probabilidade, a uma resposta ou reação também desprovida de um sentido critico como de uma pessoa de 12 anos ou menos de idade (ver “Armas silenciosas para guerras tranquilas”)

6. Utilizar o aspecto emocional muito mais que a reflexão. Fazer uso do aspecto emocional é uma técnica clássica para causar um curto circuito na análise racional, e finalmente ao sentido crítico dos indivíduos. Por outro lado, a utilização do registo emocional permite abrir a porta de acesso ao inconsciente para implantar ou injetar ideias, desejos, medos e temores, compulsões, ou induzir comportamentos…

7. Manter o público na ignorância e mediocridade. Fazer que o público seja incapaz de compreender as tecnologias e os métodos utilizados para o seu controle e sua escravidão. “A qualidade da educação dada às classes sociais inferiores deve ser a mais pobre e medíocre possível, de forma que a distância da ignorância que planeia entre as classes inferiores e as classes sociais superiores seja e permaneça impossível de ser alcançada pelas classes inferiores. (ver “Armas silenciosas para guerras tranquilas”)

8. Estimular o público a ser complacente com a mediocridade. Fazer o público acreditar que é moda ser estúpido, vulgar e inculto…

9. Reforçar a autoculpabilidade. Fazer o indivíduo acreditar que somente ele é culpado da sua própria desgraça, por causa da insuficiência de sua inteligência, das suas capacidades ou de seus esforços. Assim, no lugar de rebelar-se contra o sistema económico, o indivíduo se auto desvaloriza e se culpa, o que gera um estado depressivo, um de cujos os efeitos é a inibição da sua ação. E, sem ação, não ha revolução!

10. Conhecer os indivíduos melhor do que eles mesmos se conhecem. No decorrer dos últimos 50 anos, os avanços acelerados da ciência tem gerado um crescente brecha entre os conhecimentos do público e aqueles possuídos e utilizados pelas elites dominantes. Graças a biologia, a neurobiologia e a psicologia aplicada, o “sistema” tem desfrutado de um conhecimento avançado do ser humano, tanto de forma física como psicológica. O sistema tem conseguido conhecer melhor o indivíduo comum do que o ele conhece a si mesmo. Isso significa que, na maioria dos casos, o sistema exerce um controle maior e um grande poder sobre os indivíduos, maior que aquele do indivíduos sobre si mesmos.


E notas de rodapé, das minhas:
Claro que o título que dei a este artigo já é uma simplificação manipulatória com a intenção de ter mais impacto e chamar mais a atenção (certamente concordarão que um título como "As 10 estratégias de manipulação da opinião pública através dos media, de Noam Chomsky, resumidas num desenho" não seria lá muito apelativo). O "mal" não está em resumir e simplificar alguns aspectos da mensagem: isso pode ser útil quando, e se, servir para chamar a atenção para o resto - como é o caso do "desenho" acima - e desde que as pessoas estejam preparadas e disponíveis para ler e entender esse "resto" (que é o essencial, o mais importante).
Infelizmente para todos nós, é cada vez mais evidente que Chomsky tem razão nesta sua teoria.
O facto de ser preciso resumi-la num "desenho" já dá que pensar.
Mas que nem assim muita gente o consiga entender (e eu sei, por experiência própria, que muita gente não o consegue entender - não porque as pessoas sejam estúpidas, mas porque foram, e estão, estupidificadas pelos processos descritos por Noam Chomsky), isso sim, é preocupante.

quarta-feira, junho 06, 2012

Gostamos de ser tratados como atrasados mentais?




A imagem de cima começou a ser muito divulgada há uns dias na internet e particularmente numa das "redes sociais". A mensagem é clara, vê-se e entende-se muito bem.

Mas, apesar de a mensagem ser evidente e fácil de ler, alguém achou que isso não era suficiente. Que as pessoas que a vissem não seriam capazes de entender. Então, tratou de acrescentar uma seta a vermelho. Tipo: olhem para aqui. É para aqui que devem olhar.

Como se toda a gente não tivesse entendido já...

Como se fosse preciso tratar os destinatários da mensagem como criancinhas. Ou pior que isso...

Eu lembro-me que, há 15 ou 20 anos atrás, se aparecesse uma coisa assim num programa para crianças - digamos que na Rua Sésamo - logo muita gente diria (e com alguma razão) que isto é um atentado à inteligência e uma tentativa de passar um atestado de estupidez às criancinhas.

Fico muito admirado por ver que hoje não as criancinhas mas os próprios adultos achem isto muito natural.

E que, ainda acusem de "estar a tentar desviar a atenção do essencial" as pessoas que lhes chamam a atenção para o que está implícito no tratamento dado à imagem de baixo.

Gostamos, ou precisamos, de ser tratados como mentecaptos a quem, supostamente, não basta mostrar as coisas mas é também necessário dizer-lhes para onde devem olhar?

E a seguir aceitamos o quê? Que nos digam como devemos pensar (e já faltou mais: os engenheiros do Google já admitiram que "no futuro queremos não só facilitar a pesquisa mas dizer às pessoas que pergunta devem fazer")? E atacamos quem questionar isso porque "está a desviar a atenção do essencial"?
 
Num mundo dominado pela imagem, não é essencial pensar no que vemos e termos cuidado com as mensagens que consumismos e divulgamos - correndo o risco de, se não o fizermos, nos estarmos a expor de livre vontade a todos os tipos de populismos e de manipulação?


Anexo: Depois de ter escrito o texto acima começaram a circular, e pela mesma sequência, os dois exemplares do "Porto Menu" - primeiro o que tem a mensagem contestatária; depois o que tem a mensagem apontada a seta vermelha e desta vez  (não vá alguém ser muitíssimo estúpido ou distraído) não só com a seta mas também com um círculo a reforçar o "olhem para aqui porque é para aqui que devem olhar". A história já demonstrou que normalmente o que começa dessa maneira acaba mais ou menos assim:

Mas essa gaja, a história, quem julga ela que é para nos dar lições, não acham?

sábado, junho 02, 2012

Sobre a criação de novas freguesias em Almada (1980)

("A longo prazo estaremos todos mortos" - Keynes, tal como os neoliberais gostam de se lembrar dele)


Num momento em que poderes financeiros internacionais (neste caso representados por FMI e Banco Central Europeu) e os seus executores políticos (Comissão Europeia) querem obrigar Portugal a reduzir o número de autarquias locais, e quando o subserviente governo português se prepara para lhes fazer a vontade reduzindo o número de freguesias - neste momento parece-me oportuno lembrar que as freguesias administrativas, tal como existem hoje, por exemplo em Almada, não são fruto de nenhum acaso ou capricho: são resultado de um processo histórico e de reivindicações antigas das populações no sentido de aproximar dos cidadãos o poder e os serviços antes excessivamente longínquos e centralizados.

Claro que para os neoliberais nada disto interessa. Só conta o tempo presente, em que tudo é transformado em negócio (portanto avalia-se a necessidade de manter ou eliminar órgãos autárquicos de acordo com critérios economicistas de curto prazo); e para concretizar o negócio vale tudo, principalmente mentir e ocultar factos (por exemplo: fazer passar a ideia de que há em Portugal uma elevada percentagem de funcionários públicos - quando números, por exemplo da insuspeita OCDE, demonstram exactamente o contrário).

Para a esquerda, a questão coloca-se, naturalmente, de forma bem diversa: as pessoas e as suas necessidades antes e acima das engenharias financeiras.

Nesse sentido, divulgo o texto de uma deliberação da Câmara Municipal de Almada que, em 7 de Março de 1980, fazia o ponto da situação quanto ao processo de criação de novas freguesias - mas, mais do que isso, apresentava as razões e o enquadramento histórico para a criação dessas novas unidades territoriais de gestão autárquica (o crescimento populacional, as petições que residentes no concelho tinham feito anteriormente para que fossem criadas novas freguesias, etc.).

O documento foi aprovado por unanimidade (com votos favoráveis dos vereadores do PCP, PS e PSD) e com uma interessante declaração de voto dos vereadores do Partido Socialista.

Sei que é uma contribuição avulsa para um debate necessário, num terreno ainda pouco explorado pelos investigadores da história (talvez por ser muito recente). Mas, como diz o povo: foi o que se conseguiu arranjar...

Cito:

PROPOSTA

O aumento demográfico que se verificou, concretamente a partir dos anos quarenta, e se continua a verificar no nosso Concelho, tem contribuído para o avolumar das dificuldades de administração local, sendo notório que ao nível das freguesias o enorme conjunto de solicitações são cada vez maiores e logo assim as capacidades de resposta vão sendo proporcionalmente mais difíceis.

Há ainda a referir o conjunto de planos de urbanização em curso na Câmara Municipal que irão proporcionar um aumento demográfico ordenado, bastante significativo.

Perante esta realidade, a Câmara cessante fez constar dos Planos de Actividades de mil novecentos e setenta e oito, mil novecentos e setenta e nove e mil novecentos e oitenta, a criação de diversas freguesias, iniciando o trabalho em mil novecentos e setenta e oito.

Neste período, para além do trabalho da Câmara, as Juntas de Freguesia e respectivas Assembleias, concretamente as de Almada, Cova da Piedade e Caparica, aprovaram moções, onde era reivindicado a criação de novas freguesias.

Nesta data, encontram-se concluidos os estudos correspondentes às novas áreas administrativas de Laranjeiro, Feijó, Sobreda, Charneca e Pragal.

Finalmente a Câmara Municipal recebeu ofício datado de sete de Fevereiro de mil novecentos e oitenta, do Grupo Parlamentar do Partido Comunista Português, solicitando o parecer relativamente ao projecto da criação das freguesias do Laranjeiro, Feijó e Charneca.

Considerando o estudo levado a efeito pelos serviços camarários já concluído, da criação das novas áreas administrativas do Laranjeiro, Feijó na freguesia da Cova da Piedade, Charneca e Sobreda na freguesia de Caparica e Pragal na freguesia de Almada.

Considerando que os limites apresentados no projecto-lei do Grupo Parlamentar do PCP corresponde o estudo efectuado pela Câmara no tocante às novas freguesias de Laranjeiro, Feijó e Charneca.

PROPÕE-SE

1 - Que a Câmara Municipal dê parecer favorável ao projecto de lei apresentado pelo Grupo Parlamentar do PCP, e que corresponde à criação das novas freguesias de Laranjeiro, Feijó e Charneca.

2 - Propõe-se ainda a aprovação do estudo da criação das novas freguesias de Sobreda e Pragal efectuado pelos Serviços de Planeamento da autarquia.

Deliberação: Aprovada por unanimidade


Excerto da declaração de voto apresentada pelos vereadores do Partido Socialista:


Os vereadores do PS (Armando Laruça e Celeste Cavaleiro) "votam a favor (...) pondo no entanto as seguintes reservas":

Muito embora o Projecto de Lei número cento e noventa barra I (...) mencione que "já em mil novecentos e sessenta e quatro as populações do Laranjeiro e do Feijó (actualmente integrados na freguesia da Cova da Piedade) apresentaram na CMA requerimentos subscritos pelos "Chefes de família", no sentido de serem criadas novas freguesias", deve chamar-se a atenção de que, no caso do Laranjeiro - Feijó a população, nesse requerimento, manifestava o desejo de "que na área do Laranjeiro - Feijó seja criada uma nova Freguesia, com a denominação de Freguesia de S. José".

Votamos igualmente a favor do parecer favorável ao estudo efectuado pelos serviços de planeamento da Câmara Municipal de Almada das novas freguesias de Sobreda e Pragal, agora concluído, porque ele corresponde, em parte, ao Projecto de Lei número trezentos e vinte e três barra I, apresentado pelo Grupo Parlamentar do Partido Socialista na Assembleia da República, em vinte e cinco de Julho de mil novecentos e setenta e nove, correspondente à criação das novas freguesias de Pragal, Charneca, Sobreda, Vila Nova e Laranjeiro. Este projecto voltou agora a ser apresentado na Assembleia da República no dia cinco do corrente.

Fonte: Actas do Executivo da Câmara Municipal de Almada; Arquivo Histórico de Almada.

(Nota final: as freguesias de Laranjeiro, Feijó, Charneca, Sobreda e Pragal só seriam criadas alguns anos mais tarde)

sábado, maio 19, 2012

No tempo em que os jornalistas eram pagos para fazer perguntas (e publicar as respostas)

Abril de 2000, em Portalegre, concelho então sob hegemonia do PS, com poderes que dificultavam ao máximo todas as tentativas de fazer jornalismo independente... Mesmo assim, o semanário onde eu trabalhava (Jornal D'Hoje, dirigido por Rui Vasco Neto) lá ia mandado umas pedradas ao pântano.

Numa edição demos voz ao descontentamento do gestor de um programa governamental para o Norte Alentejano (Domingos e Sousa, também ele militante do PS, que geria o AVNA - Acção de Valorização do Norte Alentejano), o qual acusava o governador civil, Galinha Barreto, de o ter afastado do cargo de forma descricionária. O ex-gestor afirmava que as suas queixas não eram contra o governador enquanto tal mas sim contra a pessoa que, alegadamente, o afastara («não ponho em causa o governador civil mas sim as acções do individuo», afirmava em entrevista publicada na edição anterior do jornal)...

Assim, embora a "queixa" fosse de cariz pessoal entre dois militantes do partido no poder, ambos com responsabilidades governativas descentralizadas, acontecia no âmbito de um processo político e institucional que mexia com uma entidade pública.

Logo, o assunto não se encontrava no círculo restrito das relações pessoais ou dos jogos de poder internos deste ou daquele partido: estava no domínio da política - palavra que, como se sabe (ou devia saber) significa a gestão da "polis", ou seja, da cidade (em sentido lato: da vida comunitária, daquilo que nos é comum enquanto indivíduos que vivem e se relacionam em sociedade).

Portanto, face a essas acusações, fizemos o que nos competia enquanto jornalistas: tentámos ouvir o acusado. Fazer "o contraditório", como está na moda dizer-se. Lá consegui o contacto telefónico com o governador (o que, naquele ambiente de hegemonia "socialista" não foi nada fácil). O político decidiu que não tinha nenhum comentário a fazer sobre esse assunto - assunto político e já conhecido do público. Tinha todo o direito de não comentar, obviamente.

E nós tinhamos todo o dever de perguntar e, perante a recusa, de informar que, confrontado com a acusação de que foi alvo, o visado prefere não comentar. Porque uma atitude dessas é já uma atitude política. E é informação - ou seja, aquilo que os jornalistas eram pagos para produzir.

Antigamente, claro...

E mesmo assim, nem todos: havia já os que se preocupavam mais em criar factos políticos. Por exemplo, não publicando o "não comento" e preferindo depois armarem-se em queixinhas, dizendo que foram censurados. É o caminho mais fácil e também o mais populista.

Nós não precisávamos disso para enfrentar os poderes, quando tal fosse necessário. E muitas vezes os enfrentámos. Tanto que o jornal não durou muito tempo. Mas, enquanto durou, fez o que tinha a fazer e não o que outros queriam e desejavam que fizesse.

Em democracia é esse o papel da comunicação social: informar, sem contrangimentos (a não ser os impostos pelas regras deontológicas e legais que, supostamente, regulam o exercício da profissão), mesmo que para tal tenha que lutar contra os obstáculos que lhe são colocados pelos diversos poderes.

Armar-se em "quarto poder", em "contrapoder", em "poder alternativo", pensar que é dono da verdade, ou tomar a atitude contrária e ser megafone dos poderes é que não, obrigado.

segunda-feira, maio 14, 2012

Catastroika





"O novo documentário da equipa responsável por Dividocracia chama-se Castastroika e faz um relato avassalador sobre o impacte da privatização massiva de bens públicos e sobre toda a ideologia neoliberal que está por detrás.

Catastroika denuncia exemplos concretos na Rússia, Chile, Inglaterra, França, Estados Unidos e, obviamente, na Grécia, em sectores como os transportes, a água ou a energia. Produzido através de contribuições do público, conta com o testemunho de nomes como Slavoj Žižek, Naomi Klein, Luis Sepúlveda, Ken Loach, Dean Baker e Aditya Chakrabortyy.

De forma deliberada e com uma motivação ideológica clara, os governos daqueles países estrangulam ou estrangularam serviços públicos fundamentais, elegendo os funcionários públicos como bodes expiatórios, para apresentarem, em seguida, a privatização como solução óbvia e inevitável. Sacrifica-se a qualidade, a segurança e a sustentabilidade, provocando, invariavelmente, uma deterioração generalizada da qualidade de vida dos cidadãos. As consequências mais devastadores registam-se nos países obrigados, por credores e instituições internacionais (como a Troika), a proceder a privatizações massivas, como contrapartida dos planos de «resgate».

Catastroika evidencia, por exemplo, que o endividamento consiste numa estratégia para suspender a democracia e implementar medidas que nunca nenhum regime democrático ousou sequer propor antes de serem testadas nas ditaduras do Chile e da Turquia. O objectivo é a transferência para mãos privadas da riqueza gerada, ao longo dos tempos, pelos cidadãos. Nada disto seria possível, num país democrático, sem a implementação de medidas de austeridade que deixem a economia refém dos mecanismos da especulação e da chantagem — o que implica, como se está a ver na Grécia, o total aniquilamento das estruturas basilares da sociedade, nomeadamente as que garantem a sustentabilidade, a coesão social e níveis de vida condignos.

Se a Grécia é o melhor exemplo da relação entre a dividocracia e a catastroika, ela é também, nestes dias, a prova de que as pessoas não abdicaram da responsabilidade de exigir um futuro. Cá e lá, é importante saber o que está em jogo — e Catastroika rompe com o discurso hegemónico omnipresente nos media convencionais, tornando bem claro que o desafio que temos pela frente é optar entre a luta ou a barbárie."

(Obs: texto copiado do canal do Youtube que disponibiliza o vídeo)

Site do documentário:
http://www.catastroika.com/indexen.php

sexta-feira, abril 27, 2012

A Torre Velha, Monumento Nacional. Finalmente!

Informa o jornal Público (26 de abril de 2012): "A Fortaleza da Torre Velha, também designada Torre de São Sebastião da Caparica, localizada em Porto Brandão, no concelho de Almada, foi hoje classificada como Monumento Nacional pelo Governo." (noticia aqui).

A Torre ("velha" por oposição à sua "irmã gémea" mais nova, e mais famosa: a Torre de Belém) foi mandada construir por D. João II. Fazia parte de um sistema de defesa de Lisboa, inovador para a época. Funcionou como local de quarentena para quem aportava à capital do império. Foi também utilizada como prisão. Um dos escritores portugueses mais famosos no século 17 - D. Francisco Manuel de Melo - escreveu a sua "Carta de Guia de Casados" durante 2 meses que ali esteve detido (e consta que, durante esse período, terá trabalhado também em "O Fidalgo Aprendiz" - dois textos deliciosos, por sinal...).

Curiosamente, a primeira vez que li algo sobre a Torre Velha e respectivo processo de classificação foi também numa edição do Jornal Público... em 1991.

E já nesse tempo o processo era, também ele, "velho": os primeiros esforços nesse sentido foram feitos pelo município de Almada e por historiadores locais nos primeiros anos da década de 1980.

Em 1998 o semanário SemMais Jornal fazia um ponto da situação (imagem acima) de um processo que se arrastava - e que se arrastou até agora. Note-se que, nesse tempo, já havia um despacho do Ministério da Cultura (de 1996) que declarava o imóvel "em vias de classificação".

Mais sobre a Torre Velha:
No site do IGESPAR - Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico
http://www.igespar.pt/en/patrimonio/pesquisa/geral/patrimonioimovel/detail/70145/


Na Wikipédia:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Forte_de_S%C3%A3o_Sebasti%C3%A3o_da_Caparica



Leitura recomendada:
Raul Pereira de Sousa
"Pequena História da Torre Velha"
Edição Câmara Municipal de Almada, 1997


terça-feira, abril 24, 2012

Movimentos sociais e revolução

 Foto: manifestação do 25 de Abril na Avenida da Liberdade, Lisboa, em 1994. 
Na década do aparente triunfo final do capitalismo. 
Num tempo em que os arautos neoliberais anunciavam o "fim da História"...



Nos tempos mais recentes, a esquerda portuguesa tem andado a radicalizar o seu discurso. Muitos dos que, durante décadas, se acomodaram às maravilhas da sociedade de consumo e não fizeram nada para contrariar a tendência para o conformismo e para o consumismo, parecem ter acordado agora, subitamente, talvez agitados pela emergência de "novas" formas de contestação e de "novos" movimentos sociais.

Esta tendência, na verdade, não é assim tão nova. Nas "redes sociais" (como o facebook - e desculpem a publicidade à marca) já há muito tempo se andam a convocar manifestações "antipartidárias", contra "o regime", contra "os políticos" e até mesmo contra "a política" em geral.

Os slogans repetidos por toda esta gente que só acordou agora (e que, pelos vistos, ainda não entende muito bem a realidade para a qual acordou) andam sempre à volta de qualuer coisa que se pode resumir usando um dos mais famosos: "revolução JÁ".

Slogans que são repetidos - à mistura com frases "contestatárias" e "revolucionárias", muitas delas sem sentido ou contradizendo-se entre si - tanto por gente de esquerda como por gente de extrema-direita. Os mesmos slogans, as mesmas frases...

Que a extrema-direita o faça não me espanta nada. Agitar a bandeira antipartidária e antiparlamentar é uma das velhas tácticas dessa gente (os nazis fizeram-no muito para chegar ao poder - e até queimaram, literalmente, o seu próprio parlamento; e em Portugal a "revolução nacional" de 1926, que instaurou um regime corporativo autoritário de direita - um regime fascista, portanto - fez-se contra a "confusão" e a "balbúrdia" dos partidos e do sistema parlamentar da 1ª República).

Que a esquerda embarque nisso já me parece mais estranho. Mas também não me surpreende muito: uma das grandes vitórias do capitalismo é, precisamente, ter conseguido infantilizar as pessoas (independentemente da sua opção política), levando-as a não pensar, a simplesmente repetir slogans (publicitários ou políticos, tanto faz - vende-se um presidente, ou um preconceito, da mesma forma como se vende um sabonete), a querer tudo e "JÁ", como se as revoluções fossem produtos que se vão buscar à prateleira do supermercado.

E assim, chegamos a um momento histórico em que a esquerda está debilitada por anos e anos (décadas e décadas) de desmantelamento do estado social, de recuperação capitalista e - igualmente importante ou, no caso presente, talvez ainda mais importante - condicionamento e conformação da sociedade aos valores capitalistas... mas não entende isso, julga que tem muita força e que, em vez de cerrar fileiras, resistir, defender o que ainda resta de democracia, o que deve fazer é passar ao ataque e fazer uma "revolução JÁ"!

Parece-me que toda esta euforia não é, na verdade, potenciada por propagandistas de esquerda. Desconfio que, pelo contrário, esta radicalização do discurso, todo este apelo à violência e ao confronto, está a ser feito por quem tem o poder (e as armas) e que são esses os principais interessados em "tumultos".

E penso que a única forma eficaz de contrariar isso é, sem ceder a intimidações, não lhes responder à letra. Não combater no terreno deles. Não nos armarmos em Dom Sebastião suicidando-se voluntariosamente nas areias de Alcácer Quibir.

Agir de forma racional, avaliando bem a correlação de forças. Não apenas reagir. Pensar, ter espírito crítico - e não apenas ir atrás de slogans. (É por isso que gosto tanto de projectos culturais de base popular, como o da Es.Col.A da Fontinha, e outros que lhe venham a seguir o exemplo, e que possam contribuir para formar cidadãos verdadeiramente atentos e críticos.)

Felizmente há quem, no meio do delírio que se está a instalar na sociedade portuguesa, ainda consiga fazer isso. Há quem, em vez de gritar frases incendiárias e vagos apelos a uma "revolução" que ninguém (a não ser, talvez, a extrema-direita) está em condições de fazer "JÁ", lembre, como o fez recentemente Mário Tomé, que a luta se faz com persistência, «luta cidadã, transformadora, contra estes chamados democratas, tecnocratas da finança, através dos movimentos sociais e através da proposta política que os partidos políticos farão, cada um à sua maneira» (artigo completo aqui)

Mas infelizmente (estranhamente?) estas declarações não foram divulgadas pelos militantes de esquerda nas "redes sociais" da internet.

Estarão à espera que algum Otelo reanime as "forças populares abril" e vá buscar uma "revolução JÁ" ao supermercado das revoluções?

quinta-feira, abril 19, 2012

Sobre a Es.Col.A da Fontinha


As imagens da desocupação da unidade educativa auto-gestionada da Fontinha, no Porto (Es.Col.A da Fontinha) estão a transformar-se em mais um fenómeno mediático, daqueles que dão muito jeito aos poderes instituídos.

Dão jeito porquê?

Porque, com isto, faz-se muito barulho, mostram-se imagens de violência, reduz-se tudo ao mediatismo de manifestações e "tumultos" (tumultos: Pedro Passos Coelho dixit), tal como aconteceu com a recente carga policial no Chiado (e como, suponho, infelizmente há-de acontecer em mais acontecimentos do mesmo género que se preparam para o futuro próximo). A "notícia", mesmo a mais aparentemente incómoda, é recuperada como objecto de consumo e de condicionamento ideológico. Caros consumidores... perdão, concidadãos (consumidores... concidadãos: Vítor Gaspar dixit), a violência vende, e muito.

No meio de tanto ruído, que informação passa para a generalidade das pessoas? Quem não sabia o que era aquela escola ficou a saber? Ou ficou só com a imagem de um grupo de anarquistas que ocuparam uma casa onde fizeram uma coisa que nem é reconhecida pelo sistema educativo nem nada?

Espero que este vídeo possa esclarecer. É a história daquele projecto educativo, contado pelos intervenientes.

Mais (in)formação e menos ruído, se faz favor.

quarta-feira, abril 04, 2012

Phylosophya


Um dia, Toniano Arclos proclamou:

- O mundo não existe, sou eu que o invento. E talvez mesmo eu não exista, se aquele que me inventou se contenta em me imaginar.

- Oh, discípulo infame, oh degenerado! - respondeu-lhe, com pesar, o severo
Mestre Rinotiv. - Julgas, pois, que em semelhantes formas de forma obtusa se pode verter o mel que te destinei?

Toniano Arclos tremeu, perante a ira do mestre. Mas Rinotiv prosseguiu:

- Julgas tu, discípulo ingrato, ter o hálito divino por guia das tuas caminhadas intelectuais? Abre a mente e não mintas ao teu próprio âmago. Isto é, se queres saber! O mundo só existe, para ti, se o quiseres. Mas isso pouco lhe adianta. Não queiras, e o mundo continua a ser o que é, tu pouco lhe importas.

- Mas, Mestre... - atreveu-se o relutante Toniano - acho em seu discurso a contradição fundamental, aquela que existe no meu medo de existir não existindo, de não existir existindo. Se eu invento, como podeis vós, minha invenção, falar assim? Se me inventais, como posso eu sentir que sou não inventado?

- Pequena cousa é essa contradição...

- Não termina neste ponto, ó meu mestre. O difícil é ter o mundo na cabeça, se quiser, e no entanto ele continuar a existir, como vós afirmais, e, existindo, existir mesmo que eu o não queira...

- É essa a tua dúvida, discípulo hesitante?

- Sem dúvida, Mestre, que esta é a minha primordial e infinita dedução do indizível.

- Inefável se diz, oh desvairado! E quanto ao teu não saber do mundo, ele em si é já um pouco sábio; é sábio pelo que tem de inefável, sábio é pelo que tem de precipício, ou princípio de contradição. Perturbo-te, discípulo temeroso? Mas explico. Conheces aquele velho e brejeiro dito "se a pedra no deserto é desconhecida da minha pessoa, será lícito eu crer que ela exista?" e conheces o outro, quiçá não menos brejeiro porém superlativamente assertivo, "a pedra no meio do deserto não existe enquanto eu dela não tomar conhecimento"?. Conheces?

- Sim, Mestre, deveras conheço.

- Pois bem. Aquilo a que se chama realidade é por nós entendida segundo diversas alegorias. Há quem lhe chame labirinto, alguns preferem configurá-la como uma espiral; outros ainda dizem ser a realidade uma estória arbitrária e compulsiva, tal um diálogo interminável da mão direita do criador com o seu órgão criativo; e outros inventam... eu sei lá... Tal como o nosso computador central admite e proclama, também eu confesso que só sei nada saber. Mas, ao contrário do nosso computador central, conheço bem que a percepção das cousas que existem neste mundo é uma percepção fisiológica, logo, material, logo, o processo da percepção começa antes de a própria percepção se ter manifestado em todos e em cada um de nós. Entendes isto?

- Difícil é de entender, ó meu Mestre...

- Mas, pobre discípulo, qualquer livro básico de dialéctica psicologico-materialista te informa sobre estas cousas.

- Então, Mestre, somos apenas máquinas de perceber, e o mundo joga e brinca com as nossas fraquezas e imperfeições biológicas?

- Se assim o preferires entender, pode ser uma verdade. Mas lembra-te de entender isto: somos nós, és tu, quem faz o mundo. A pedra que vês, se a vês, não é a mesma que tocas, se lhe tocas. Porque já os átomos de pele e pedra se cruzam, se misturam. E, se a pedra é assim, tocas-lhe com os dedos e já não é; quebras e são duas pedras; imaginas e as pedras para ti se multiplicam. Afinal, a matéria do cérebro, e da mão, e da pedra, é matéria igual. Só a sua organização específica difere em pedra, mão e cérebro. Por fim, ao moldares as pedras que multiplicaste em novas pedras, crias um corpo diferente do teu, feito da mesma matéria, mas diferente por ser realidade nova.

- E a pedra que não vejo, por estar perdida no meio do deserto?

- De essa se pode dizer que tem a felicidade de não conhecer criatura tão terrível para com as pobres pedras dos desertos deste mundo.

- E devo crer que ela existe?
- E ela, deve crer que tu existes?

- Devo, então, Mestre, duvidar?
- Exacto.

- Como ela de mim duvida?
- Sem dúvida!

- Então, duvidar sempre, e de tudo?
- Sempre. E de tudo.

- De tudo?
- E sempre.

- Sempre?
- E de tudo!

- Uau!!!


Affonso Gallo

Texto publicado no poezine Debaixo do Bulcão
editado em Almada, no mês de setembro de mil novecentos e noventa e oito.

Nota: este é o único texto em prosa que se conhece desse obscuro autor almadense que assina com o pseudónimo de Affonso Gallo. De resto, pouco se sabe sobre este autor. Fernão Lopes, na primeira parte da Crónica de El Rei Dom João Primeiro de Boa Memória e dos Reis de Portugal o Décimo menciona um Affonso Gallo que, em 1384, sendo regedor da vila de Almadaã, foi capturado pelo exército castelhano e levado diante dos muros da fortaleza por um cavaleiro gascom de nome Mosse Ymam, muito homem de prol e bom homem de armas, que exigiu aos sitiados a entrega da vila pois, caso contrário, o regedor havia de morrer. E responderam-lhe os de dentro que bem os podia elRei de Castela matar se quisesse, mas que a vila não dariam por cousa alguma que fosse. E como o cavaleiro gascom não lhes deu ouvidos e continuou exigindo a rendição da vila, os de dentro fizerom prestes um trom pequeno e tiraram-lhe dantre as ameias. E foi tal sua ventura que o tiro deu com ele morto por terra e ficou Affonso Gallo vivo de pé (supõe-se, aliás, que é deste episódio que deriva a conhecida expressão popular portuguesa "grande galo!"). Além disto, existe, na toponímia almadense, uma Rua Affonso Gallo. Contudo, os estudos científicos até hoje realizados, bem como as especulações filosóficas sobre o assunto não comprovaram que se trate do mesmo Affonso Gallo - e há, de resto, razões bem fundamentadas para supor que o não seja.

segunda-feira, abril 02, 2012

Polissemia nas imagens (ou na visão dos espectadores?)



Olhemos para estes dois pares de imagens (que andam a circular na internet) . São iguais ou diferentes?

O texto é complemento da imagem? Ou faz parte da imagem?

De que forma a substituição de uma palavra por outra (e a inclusão de cores - às quais associamos significados específicos - nas palavras) altera (ou não altera?) a percepção da mensagem?

E, já agora, qual é a mensagem?

Há, a este respeito, uma frase de Roland Barthes muito citada: "toda a imagem é polissemica e pressupõe, subjacente aos seus significantes, uma “cadeia flutuante” de significados, podendo o leitor escolher alguns e ignorar outros".

Talvez por isso mesmo, o primeiro pensamento que me ocorreu quando vi o primeiro par de imagens foi qualquer coisa como: "disparate! de um lado conceitos culturais, de outro uma visão idílica da natureza... qual é a ideia?".

E só entendi (mas entendi mesmo?) ao ver, depois, o segundo par - que julgo ser o original, pelo que o outro será uma alteração (para não dizer deturpação). As imagens são as mesmas. Mas a legenda (que é imagem, também, ou não? - ou melhor: a imagem é também texto, ou não?) permitiu-me (ou possibilitou-me) uma percepção (leitura) diferente da que tivera em primeiro lugar.

EGO e ECO - o trocadilho, de alguma forma "desdramatiza" a mensagem; mas, por outro lado, torna-a (a meu ver) mais legível. ECO, de ecologia, em vez de "natureza". Ecologia, ciência que estuda as relações dos organismos com o seu meio ambiente (não apenas com os outros seres vivos... mas esqueçamos esse pormenor, para não complicar) em vez de uma "natureza" idealizada (na qual, a levar aquilo à letra, nenhum ser humano sobreviveria durante muito tempo).

Ah, pois, há também a questão de homens e mulheres separados, com o homem em cima na estrutura piramidal e ambos misturados indiscriminadamente com a restante bicharada na estrutura circular. Sim, percebi a ideia, estejam descansados. Essa era a parte mais fácil.

Num mundo em que estamos expostos (e nos expomos) a um fluxo constante de mensagens, e em que somos cada vez mais tanto emissores como receptores, há que ter atenção (ou cuidado) com as imagens que emitimos - e que podem, muito bem, ter o efeito contrário ao desejado. Nunca devemos dar como garantido que o "público alvo" da nossa mensagem tem as mesmas referências que nós e que, portanto, a vai entender tal como nós a entendemos. A descodificação é uma coisa tramada.

E isto é válido para as imagens que escolhi para ilustrar este artigo, tal como é válido, por exemplo, para cartoons que comparam vândalos urbanos com vândalos financeiros, ambos a incendiar coisas; imagens com supostas criancinhas africanas desnutridas que são postas a circular com a legenda "partilhem, pode ser que assim as multinacionais se comovam e ajudem"; ou as fotos (e vídeos) de cargas policiais e outras violências, espontâneas ou encenadas, aqui, no México, na Ucrânia ou no Cú de Judas (que, na internet, é já ali adiante).

A overdose de imagens está a fazer de nós espectadores acríticos? Confusos, sem capacidade de descodificar? Defensivos, procurando, na multiplicidade de ofertas (veja-se o caso da televisão por cabo ou das "redes sociais" da internet) apenas o que nos interessa e nos conforta (ou, alternativamente, o que nos interessa porque nos horroriza e desconforta), ignorando tudo o resto?

Não sei. Mas nunca fiando...

sábado, março 24, 2012

Carga policial no Chiado: uma história de bons e maus?


Link
A propósito da carga policial no Chiado, Lisboa, no dia da Greve Geral (22 de março de 2012), e na sequência do que escrevi anteriormente - Informação versus "comunicação" na arena da junk food mediática - aqui ficam dois vídeos que podem ajudar a esclarecer uma história muito mal contada.

A versão da história que anda a correr mundo fala de uma carga policial e de agressões a jornalistas. Mas não conta o que aconteceu antes da carga policial. Os próprios jornalistas escondem isto. Porquê? A quem interessa todo este show off, toda esta falta de rigor? Quem quer reduzir isto a uma agressão gratuita dos "maus" (a polícia) contra os "bons" (os manifestantes)?

Esta é a versão que anda a ser divulgada. Note-se que são vídeos feitos no mesmo local, no mesmo acontecimento. Mas não parece, pois não? Porquê?



Evidentemente, nada pode justificar a violência desproporcionada da carga policial.

Mas, da mesma forma, só interesses obscuros (ou a vontade de fazer propaganda, ignorando o rigor informativo) podem "justificar" que a história tenha sido tão mal contada por quase toda a gente - pela comunicação social dominante mas também pelos que tanto a acusam de sensacionalismo e parcialidade... para a seguir fazerem exactamente aquilo que antes condenavam. E querem ser levados a sério?

sexta-feira, março 23, 2012

Informação versus "comunicação" na arena da junk food mediática


Ontem foi dia de greve geral em Portugal. Uma greve que teve grande adesão e, portanto, grande sucesso nos objectivos a que se propunha (dados sobre a greve disponíveis em http://www.grevegeral.net).

Mas ontem foi também dia de manifestações e de cargas policiais.

Portanto - logicamente? - as "notícias" de hoje dão relevo às manifestações e cargas policiais, deixando para segundo plano a greve e os seus resultados.

Mas não só as "notícias" dos grandes órgãos de comunicação social. Também na internet o que mais se vê são imagens das cargas policiais, divulgadas por pessoas que, em princípio, teriam interesse em não alinhar no sensacionalismo que a comunicação social dominante promove.

Na minha opinião, insistir em imagens de violência sem as contextualizar apenas faz com que as pessoas se habituem mais e mais às imagens de violência. Não é assim que se ganham ou se mobilizam para uma causa pessoas que não estejam já sensibilizadas. Os outros (a maioria) olham para essas imagens como olham para tantas outras que se habituaram a consumir. Mesmo que se sintam indignadas, mesmo que manifestem simpatia por um (ou outro) dos lados "em confronto", não se querem envolver. Foram condicionadas a pensar assim. Não é à toa que se diz que vivemos numa "sociedade do espectáculo".

Eu sei: é uma opinião polémica. Mas é resultado do que tenho observado e analisado ao longo dos anos (e também, naturalmente, resultado da minha praxis profissional). Espero poder desenvolver e fundamentar melhor este assunto em futuros artigos.

Entretanto, ao olhar para a forma como as fotografias e vídeos das manifestações e cargas policiais de ontem têm vindo a ser divulgadas (e como, por terem audiência garantida, servem também para vender publicidade: um dos vídeos "amadores" feito numa das manifestações está a ser divulgado no site de um diário português... mas quem tenta aceder ao vídeo leva primeiro com publicidade a uma marca de automóveis - isto para dar só um exemplo), lembrei-me do livro "Jornalismo e Sociedade", escrito há uma dúzia de anos por um dos mais prestigiados jornalistas portugueses, Fernando Correia.

Aqui ficam algumas passagens que podem - espero eu - ajudar a contextualizar isto tudo (não dispensa a leitura do livro na sua totalidade).

"Nunca como actualmente foram tão evidentes a transformação da notícia em mercadoria e a sujeição das estratégias informativas às estratégias comerciais, de que a valorização do secundário e a subvalorização do importante, o sensacionalismo, a superficialidade, a informação-espectáculo e a explosão dos excessos da imprensa cor de rosa constituem, em planos diversos, expressões concretas.

Toda esta situação, como seria inevitável, tem-se reflectido na forma de pensar e de agir dos jornalistas, considerados individualmente e como grupo profissional. À prevalência dada aos imperativos comerciais e à subordinação dos critérios jornalísticos às chamadas exigências de mercado (mas quem é que faz com que as exigências de mercado sejam estas e não outras?), juntam-se uma série de outros factores que vão quebrando e dissolvendo a anterior homogeneidade profissional.

(...)

A prevalência absoluta das leis do mercado (isto é, da capacidade dos mais poderosos estabelecerem e arbitrarem, em seu proveito, as regras do jogo económico) e a centralidade social adquirida pela comunicação em geral e pelos media em particular, juntamente com a aplicação de novas tecnologias, trouxeram consigo formas diferentes de fazer jornalismo e novos enquadramentos profissionais. Seria totalmente errado fechar os olhos às realidades e não aceitar uma necessária e indispensável evolução nos modos de conceber o jornalismo.

(...)

Por um lado, o próprio facto de as novas tecnologias proporcionarem um extraordinário aumento da realidade acessível aos media sublinha a necessidade e a importância da tarefa do jornalista enquanto mediador (investigador, revelador e criador) entre essa realidade, cada vez mais vasta e diversificada, e o público.

Por outro lado, porém, o jornalista está ameaçado nos seus fundamentos pelas novas possibilidades técnicas (informação em maior quantidade, mais rápida, se necessário em tempo real, etc) - não, naturalmente, pela própria existência dessas novas possibilidades, mas sim pela sua apropriação e utilização ao serviço de estratégias mediáticas socialmente determinadas. Estratégias prioritariamente dirigidas, nomeadamente no caso da TV, para a valorização do efémero, do distractivo e do superficial, em prejuízo do profundo, do sério e do substancial (o que não significa que toda a informação tenha que obedecer sempre a estes critérios!)

(...)

Isto implica uma concepção dos media e do jornalismo não apenas enquanto mero negócio, mas como uma actividade com deveres e obrigações de natureza social, decorrentes da sua força e capacidade ímpares para influenciar a opinião pública. Esta concepção, para ser operacional, não pode constituir apenas património dos jornalistas, tendo também que ser, de alguma maneira, partilhada pelos agentes que intervêm na produção e edição de informação.

Existe um espaço de autonomia jornalística que, no entanto, tende a estar cada vez mais circunscrito aos quadros dos valores e dos critérios vigentes. O facto de, lamentavelmente, haver cada vez mais jornalistas que, por convicção ou não, participam diligentemente na concretização de tais valores, não é mais do que um reflexo - grave e preocupante - da situação dos media no ponto de cruzamento de interesses económicos, políticos e ideológicos, sob a batuta visível ou a inspiração oculta dos senhores do dinheiro.

(...)

Os manuais ensinam que o bom jornalista terá que ser culto, ter interesse pelas realidades humanas e curiosidade pelas coisas da vida, dominar bem as técnicas do ofício e respeitar a deontologia. Mas numa actividade como esta, tão próxima das pessoas, do seu quotidiano e dos seus problemas, e com tanta influência sobre elas, julgo indispensável, por parte do jornalista, o aprofundament da sua responsabilidade social.

Uma responsabilidade social sem a qual, ao esquecer as implicações económicas, políticas, culturais e religiosas inerentes ao jornalismo enquanto fenómeno social, o exercício da profissão se descaracteriza e empobrece, perdendo grande parte do seu significado e das suas virtualidades ao serviço da valorização e da transformação dos homens e da sociedade".

Fernando Correia
"Jornalismo e Sociedade" - Editorial Avante!, Lisboa, 2000

Entendem o que tem tudo isto a ver com a imagem acima (e com o contexto em que foi captada, e com a forma como está a ser divulgada e vulgarizada)?

quarta-feira, março 21, 2012

A marca da ditadura. E a ditadura das marcas


Imagem: cartaz de Rui Rocha (com um agradecimento ao autor)

O sistema político-económico em que vivemos tudo transformou (e transforma) em objecto de negócio. O lucro é o seu valor moral mais elevado. "Resolveu a dignidade pessoal no valor de troca, e no lugar das inúmeras liberdades bem adquiridas e certificadas pôs a liberdade única, sem escrúpulos, de comércio", escrevem Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista.

E, noutra passagem do mesmo livro "A burguesia despiu da sua aparência sagrada todas as actividades até aqui veneráveis e consideradas com pia reverência." Pois que "A burguesia não pode existir sem revolucionar permanentemente os instrumentos de produção, portanto as relações de produção, portanto as relações sociais todas" (...) "Todas as relações fixas e enferrujadas, com o seu cortejo de vetustas representações e intuições, são dissolvidas, todas as recém-formadas envelhecem antes de poderem ossificar-se. Tudo o que era dos estados e estável se volatiliza, tudo o que era sagrado é dessagrado, e os homens são por fim obrigados a encarar com olhos prosaicos a sua posição na vida, as suas ligações recíprocas."

"Tudo o que era sagrado é dessagrado": tudo se compra, tudo se vende - até a imagem de ditadores. E mesmo a imagem de revolucionários (vejam o que se tem feito com a famosa fotografia de Che Guevara - sobre isso escrevi no "post" abaixo deste).

Vendem-se presidentes como se fossem sabonetes.

E pretende-se vender em Portugal o vinho Salazar como se vende na Austrália o gelado Magnum Cherry Guevara.

"É tudo negócio, nada de pessoal", como diziam os mafiosos dos filmes de Francis Ford Copolla. É a lógica do capital.

A ideia peregrina que a câmara municipal de Santa Comba Dão teve - criar a marca salazar - tem enfrentado a contestação de pessoas que não se esquecem que Salazar foi não uma garrafa de vinho, mas sim um ditador que manteve Portugal num regime opressivo de estilo fascista e colonial, que promoveu e defendeu a iliteracia, que convencia o povo de que a pobreza em que vivia era uma virtude e uma honra (e ao mesmo tempo mantinha os cofres do Estado cheios de ouro), que mandou jovens matar e morrer numa guerra injusta e que obrigou tantos outros a emigrar.

E é claro que temos de lutar contra isso. Contra esta e todas as tentativas de branquear a imagem do ditador e da ditadura.

Vender um "vinho salazar" pode ser acima de tudo um negócio para fascistas e saudosistas mas é, também, obviamente, uma banalização inaceitável de algo que não pode ser olhado senão como um mau exemplo, com o qual temos de aprender (para não o repetir) em vez de deixarmos passar como mais uma banalidade. Concordo que devemos combater tudo o que possa servir como pretexto para reescrever a História (ou esquecê-la, o que é quase tão mau).

Mas é boa ideia, também, tentarmos alargar o horizonte da nossa percepção. Ver para além do nevoeiro de propaganda que nos rodeia. Não agir apenas por reflexo e quando o mal já está feito ou em vias de se concretizar.

Se chegámos a este ponto não foi só porque alguém de repente se lembrou que podia fazer negócio com a "marca salazar".

Se alguém se lembrou que podia fazer negócio com isso, é porque sabe que à partida terá clientes. E se quem quer fazer uma coisa dessas acha que vai ter clientes, então sabe que há pessoas dispostas a esquecer (ou a não querer conhecer) o passado ainda não muito distante. E que haverá, até, pessoas para quem o nome Salazar não diz nada. É mais uma marca entre tantas outras. Tal como (lamento dizê-lo) é para muitos jovens por todo o mundo a marca Che Guevara: uma entre tantas outras.

Não, não estou a querer comparar o revolucionário com o ditador! Obviamente que não! Estou a comparar a apropriação que o capitalismo faz das figuras de um, de outro, e do que mais aparecer e der lucro - depois de devidamente descontextualizado e esvaziado de sentido : "A burguesia despiu da sua aparência sagrada todas as actividades até aqui veneráveis e consideradas com pia reverência"

Vivemos numa ditadura de grandes multinacionais que, por todo o lado, vão impondo as suas leis e substituindo o papel que até há não muito tempo estava reservado aos estados. Os simbolos visíveis destes novos ditadores são as marcas.

Nesta sociedade consumista, as marcas substituiram (para uma grande fatia da população da Europa, América do Norte, Ásia, Austrália, e mesmo para muitos na América Latina e em África) os símbolos das ideologias.

As pessoas - os jovens, mas nao só os jovens - afirmam-se pelo que têm e podem exibir, e não pelo que pensam, pelas ideias que defendem e pela forma como lutam pelas suas ideias. Há excepções, evidentente. Há os que lutam contra este estado de coisas. Mas esses são ainda poucos.

Durante as últimas décadas as pessoas foram convencidas a acatar uma nova ideologia: a do consumo, custe o que custar e custe a quem custar.

Nos anos 90, ao mesmo tempo que se reduziam salários e se aumentava a exploração da mais-valia, dava-se às pessoas a esperança de uma vida melhor, com mais acesso a bens materiais.

Como foi isso possível?, poderão perguntar alguns. A resposta é: facilitando o crédito ao consumo! As pessoas não tinham assim tanto dinheiro, mas podiam pedir empréstimos para comprar bens de consumo. Empréstimos que, inevitavelmente, não poderiam pagar no futuro. E os bancos sabiam isso muito bem! Assim, os consumidores de ontem tornaram-se os reféns de hoje - reféns de um sistema financeiro que tem nos bancos a sua face visível e nas marcas os seus símbolos ideológicos.

Mas essa aparente prosperidade dos anos 90 não chegava a todos. Havia, ainda, uma classe média. Mas era relativamente pequena. Muita gente não acedia (ou muito dificilmente acedia) a esse paraíso consumista.

A maior parte das pessoas já não passava fome. A pobreza tinha diminuido, é certo. Mas o acesso aos bens de consumo da moda, como automóveis, telemóveis ou roupas de marca - e tê-los era sinónimo de sucesso, segundo a ideologia dominante - não era para todos.

E assim vimos, ao longo da década de 90, jovens dos subúrbios, mais ou menos organizados, a roubar e assaltar, não para comer, mas para ter acesso a esses bens. Os telemóveis e a roupa de marca eram os troféus mais apetecidos. Exibi-los era o sinal exterior de um "sucesso" ilusório.

A orgulhosa exibição de "roupas de marca" - ou seja, a orgulhosa exibição das marcas no corpo de quem deu dinheiro, ou roubou, para as ter (leia-se: propaganda grátis às marcas feita por quem adquiriu o produto) - só por si dava um tratado. Espero que alguém, um dia, o escreva.

Tal como o crédito ao consumo "oferecido" e "facilitado" pelos bancos, o culto das marcas viciou as pessoas. Fez com que todos - ricos, pobres, classe média, enquanto existiu - aceitassem como "natural" esta religião do consumo.

A religião não deixou de ser o ópio do povo. O vinho salazar pode ser uma merda. Mas o consumismo é a droga maior. Ambos intoxicam.

E todos nós, os que não se revoltaram, não reagiram e não denunciaram a tempo, estamos intoxicados e temos culpa por nos termos deixado intoxicar.

Estamos a tempo de sair disto? E queremos?