António Vitorino entrevistado por Artur Vaz, em Almada Gente Nossa, 3º volume

ANTÓNIO VITORINO

Jornalista e poeta

Nascido no Rio de Janeiro (Brasil), em Dezembro de 1963, António Vitorino veio em 1973 morar para Almada (bairro do Raposo de Baixo), onde conclui o ensino primário. Fez o Ciclo Preparatório na Trafaria e depois frequentou o então Liceu Nacional de Almada, hoje Escola Secundária Fernão Mendes Pinto, no Pragal, até ao 9º ano.

Em 1981 entrou como colaborador no CCA – Centro Cultural de Almada, onde se manteve entre os anos de 1981 a 1986, sendo no último ano eleito para a sua Direcção. Nessa associação frequentou e apoiou diversos cursos e acções de formação: Teatro, Teatro de Fantoches, Serigrafia, Fotografia, entre outros...

Representou o CCA em dois encontros internacionais de Teatro de Fantoches no Porto e Alcobaça, promovidos pelo então FAOJ antecessor do IPJ – Instituto Português da Juventude. Foi ainda promotor e organizador no âmbito de uma Feira do Livro, promovida pelo CCA, um espaço de publicações alternativas, que incluía fanzines, recitais de poesia e debates. Durante esse período frequentou um curso de Técnicas de Vídeo (em U-Matic, que era o sistema usado na época pelos profissionais) no FAOJ de Setúbal e como "ouvinte", um curso de Cinema de Animação, na Gulbenkian.

Com o surgimento das chamadas rádios "piratas" locais frequenta a "Rádio Urbana" (Almada) onde para além de editor de noticiários foi co-realizador de um programa "generalista", até ao encerramento dessa emissora (1988).

Entretanto passou pelo Grupo de Dança de Almada onde fez fotografia e secretariado e em Novembro de 1992, iniciou a sua carreira profissional como jornalista na "Rádio Baía" (Seixal) até Julho de 1993. Em Janeiro de 1994 muda-se para a "Rádio Voz de Almada", com as mesmas funções e em meados de 1995 iniciou-se no jornalismo escrito, no quinzenário almadense "Sul Expresso" até ao seu fecho em Abril de 1997.

Simultaneamente, começou a trabalhar na "Revista Sem Mais", de Setúbal e em 1998 faz parte da primeira equipe redactorial do semanário "Sem Mais Jornal", estando também ligado às edições do "Jornal da Região" de Almada e Setúbal.

Nos finais de 1999 vai morar para Portalegre, onde trabalhou como coordenador de redacção no semanário local "Jornal D'Hoje", dirigido por Rui Vasco Neto.

António Vitorino regressa a Almada, em 2001, mantendo em actividade o projecto Debaixo do Bulcão, fanzine de poesia nascido em Dezembro de 1996 e que ainda mantém no seu blog (www.debaixodobulcao.blogspot.com).

Organizou ainda alguns eventos complementares à edição do "bulcão" como: espectáculos de teatro, concertos de música moderna, recitais e exposições de artes plásticas, entre outros.

Participou em alguns recitais de poesia e em tertúlias poéticas, estando a sua poesia representada nas colectâneas Alma(da) Nossa Terra – Antologia de Poetas Almadenses e Index Poesis. Com alguns livros de poesia para publicar, escreveu dois textos para teatro: "O Quarto Minguante" (1992/1994) e "Romance de Eunice e Agapito" (1997).

Amante da novas tecnologias de informação, António Vitorino publica ainda poemas sob os pseudónimos Affonso Gallo e de Baltasar Mingo, nos blog’s (www.affonsogallo.blogspost.com) e (www.horas-depuradas.blogspost.com).

Possui ainda o blog "coisitas do vitorino" (www.vitorinices.blogspot.com) e participa nos blog’s culturais "Almada Cultural" (www.almada-cultural.blogspot.com) e "Almada Cultural (por extenso)" (www.almada-cultural2.blogspot.com).




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António Vitorino, fale-nos do Brasil e da sua meninice?

Não me lembro de muita coisa. Estive lá durante os dois primeiros anos da minha vida, e pouco mais. Nasci no Rio de Janeiro, na zona centro da cidade. Aprendi lá as primeiras palavras. Quando cheguei a Portugal, as pessoas reparavam na minha origem brasileira porque falava ainda com sotaque. Importa referir que nasci no Brasil, mas a minha família é toda portuguesa. Tenho raízes em Lisboa e no Alentejo, concelho de Montemor-o-Novo.

Isto não quer dizer que renegue a minha origem brasileira. Antes pelo contrário! Mantive, até há pouco tempo, a nacionalidade brasileira (mesmo com alguns incómodos que isso me acarretou, porque os estrangeiros a residir em Portugal são confrontados com inúmeras dificuldades burocráticas). Sou cidadão português desde Outubro de 2007

Aos dez anos vem para Almada foi fácil?

Vim para Almada por decisão própria. A decisão foi fácil. Difícil foi adaptar-me à realidade que aqui encontrei. Quando cheguei a Portugal, com os meus pais, fui morar para os arredores de Lisboa, na margem norte. Quando tinha 5 anos, eles separaram-se (num processo que, para mim e para eles, foi muito violento e traumático) e passei a viver então, primeiro em casa de uma família "de acolhimento" - com quem não me dei nada bem, aliás - no Monte Estoril; depois, sempre na zona da "linha do Estoril", residi alternadamente com a minha mãe e com o meu pai.
Entretanto, a minha mãe vem viver, com o meu padrasto, para o Raposo de Baixo (arredores de Almada, perto do local onde existe hoje o bairro amarelo) e convence-me a vir morar para esta banda.

O gosto pela cultura leva-o a entrar no CCA – Centro Cultural de Almada. Era o começo de sua intervenção como agente cultural?

Sim. Entrei para o Centro Cultural de Almada em 1981, a convite da minha professora de Teatro no 9.º ano: Maria Santos (que, nessa época, além de professora do ensino secundário, era também dirigente do Partido Ecologista Os Verdes). O ano lectivo tinha terminado, e ela entendeu bem a minha vontade de fazer "coisas culturais".

O CCA foi, para mim, uma grande escola. Mas, quando lá cheguei, fiquei muito decepcionado com o que eles tinham para oferecer. Pensava que ia trabalhar com o público (ou seja, ter algum protagonismo) mas o que eles lá faziam era, essencialmente, dar formação técnica, artística e cultural (em sentido estrito e em sentido lato) aos agentes culturais (ou animadores culturais, como então se dizia).

Assim que lá cheguei, "meteram-me" logo no atelier de serigrafia (porque era aí que era necessário ter um colaborador). E, a partir de então, tive a oportunidade de aprender essa arte (técnica e ofício, também), tal como tive oportunidade de aprender - em acções práticas e no apoio que dava aos cursos que ali se faziam - fotografia, teatro, teatro de fantoches (hoje dir-se-ia marionetas, o que não é bem a mesma coisa), vídeo (fiz um curso em 1985, quando ainda pouca gente tinha a oportunidade de lidar com essa tecnologia), entre outros. Para não ser injusto, devo referir que tive, no CCA, dois "professores" a quem muito devo (embora, se calhar, naquela altura nem me tivesse apercebido disso): Jerónimo de Sousa e Nuno Bernardo.

Além da formação técnica e artística que ali obtive – actividades nas quais, o CCA foi pioneiro no nosso país – tive também a possibilidade de acompanhar acções mais viradas para o exterior.

Em 1988 foi o fim das rádios ditas piratas. Para além de locutor você foi também co-realizador de um programa "generalista", na "Rádio Urbana".
Qual o historial dessa rádio almadense?

Na verdade, Artur Vaz, não sei bem o historial dessa rádio. Fui convidado por alguém que já lá estava, e que conhecia o meu trabalho do tempo das "rádios móveis" (ou "estúdios móveis", como se começou a dizer já na década de 90).

Posso falar, sim da minha experiência enquanto "colaborador" dessa emissora (na qual trabalhei sempre, e com muito gosto, "à borla" - o que, aliás, julgo que era a regra entre as pessoas que por lá andavam).

Sobre o programa generalista... Chamava-se "Comboio-correio", era realizado por 3 pessoas (eu, o Rui Jorge Martins e outro colega a quem chamávamos Tony, mas de cujo nome já não me recordo). Era emitido, em directo duas vezes por semana (de segunda para terça e de quinta para sexta, entre a meia noite e as duas).

O conceito era: duas horas de viagem pela música, com uma paragem de aproximadamente meia hora num determinado local do mundo, ou num determinado género musical (e nessa meia hora, não nos limitávamos a passar música, mas informávamos sobre o estilo ou local em questão).
Era rádio de autor – algo que, infelizmente, se perdeu

Contudo, começa a sua carreira como jornalista profissional na "Rádio Baía" (Seixal). Porquê depois a "Rádio Voz de Almada"?

– É verdade. Começo a minha carreira profissional em Novembro de 1992, na Rádio Baía. E, a partir desse momento, tento sempre que as minhas opções sejam, precisamente, opções profissionais. Nem sempre o consegui fazer, muitas vezes por motivos independentes da minha vontade (e da minha qualidade profissional, que - e perdoe-me a falta de modéstia nesta ocasião - é quase unanimemente reconhecida pelas pessoas com quem trabalhei).

Para responder à pergunta tenho de contar um pouco da minha história na Rádio Baía. Já na transição da década de 80 para a de 90 eu era ouvinte habitual de alguns programas dessa estação da Arrentela. Gostava especialmente das "Madrugadas na Baía" e de um programa matutino, muito personalizado (de cujo nome não me recordo, mas sei que era feito por um dos fundadores da rádio).

Gostava desses programas porque eram a tal "rádio de autor", personalizada, interessante de ouvir. Eu era, portanto, um "fã" de dois ou três programas da Rádio Baía (e aproveito para citar também o "Som Malandro", programa de músicas de África, que passava nos sábados à tarde, já na época em que eu lá trabalhei). Em 1992, a Baía começa a passar "spots" pedindo colaboradores para "fazer rádio". Ora, era isso mesmo que eu queria: fazer rádio!
Candidatei-me, fui a uma entrevista e começo a minha carreira profissional como jornalista, em Novembro de 1992, porque queria fazer rádio, mas a rádio precisava era de gente para a informação!...

A verdade é que, a partir desse momento, comecei a perceber que podia ser, verdadeiramente, um jornalista. E, na Rádio Baía, tive a sorte de conhecer pessoas que me incentivaram e que, por serem também muito competentes, foram o meu "termo de comparação": se eram bons profissionais (apesar de estarem no início da sua actividade) e se eu não lhes ficava atrás (antes pelo contrário), então, porque não seguir mesmo essa carreira profissional – carreira que, de resto, era também uma das minhas possíveis opções, desde que, em criança, "devorava" os jornais que o meu pai tinha na barbearia de que era proprietário?

Portanto, o sonho torna-se realidade…

Sim, de certo modo, Artur Vaz. Sem querer ser injusto para outras pessoas com quem trabalhei, devo referenciar quatro colegas que, pela sua competência, foram marcantes nesse meu início de actividade: o locutor Marco Ribeiro (de quem, entretanto, perdi o rasto) e os jornalistas Carla Ribeiro (que está actualmente na revista Visão,) Susana André (que, salvo erro, está na SIC.), e Paulo Rolão, que trabalha actualmente na delegação de Coimbra da RTP.

– António Vitorino é da opinião que a legalização, foi um fracasso em termos de desenvolvimento das próprias rádios locais, face ao poder das rádios de cariz nacional?

Não acompanhei esse processo de maneira a que possa ter uma opinião muito fundamentada sobre o assunto. Face aos resultados do processo, parece que sim: poucas rádios locais sobreviveram, e muitas delas foram absorvidas pelos grandes grupos. Mas isso – essa tendência para a concentração – é, infelizmente, algo que temos vindo a observar em muitos sectores da economia – e não apenas na comunicação social. E suponho que o fracasso das rádios locais se deve também, em parte, às próprias empresas que as dirigiam.


Porquê a troca da imprensa falada pela imprensa escrita?

Quando em Julho de 1994 deixei a Voz de Almada, a directora de informação, Ana Isabel Borralho, que conhecia tanto a minha competência, apresentou-me à redacção do jornal Sul Expresso, e ao respectivo director, Luís Maia.

Este colocou-me em contacto também com o jornalista Raul Tavares, ao tempo responsável pela revista mensal Sem Mais – um inovador projecto jornalístico do distrito de Setúbal, que deu origem ao actual semanário Sem Mais Jornal, e a tudo o que lhe está relacionado.
O Sul Expresso, por seu lado, era um quinzenário regional, que após um período inicial muito conotado com um partido político, estava numa fase de reestruturação, com um novo director e a constituir uma nova equipa redactorial.
É justo que diga que foi no Sul Expresso que aprendi o que é trabalhar na redacção de um jornal. E que jornal! Se a revista Sem Mais era, como disse, um projecto com características inovadoras, o Sul Expresso tinha uma dinâmica e um espírito de equipa que não encontrei em mais nenhuma redacção.

Depois de uma carreira de sucesso pelo jornal "Sul Expresso"; pela "Revista Sem Mais" e pelo semanário "Sem Mais Jornal", vai para Portalegre, onde exerce a coordenação redactorial do local "Jornal D'Hoje". Porquê esse passo?

Por razões pessoais rumei a Portalegre, sem qualquer perspectiva profissional. Quando lá chego, tenho a sorte de encontrar um semanário independente - o Jornal D'Hoje - que estava a constituir uma redacção, e que viria a ser um caso sério (embora efémero) no panorama editorial portalegrense - que era, para dizer a verdade e usar uma expressão que, pouco depois ficou célebre, um autêntico pântano.
O director, Rui Vasco Neto, contratou-me para ser "coordenador de redacção" (o que, na prática, correspondia a chefe de redacção, mas sem o pomposo título - que, de resto, dispenso). Durante alguns meses, e apesar de todas as dificuldades - porque Portalegre não estava preparada para uma coisa assim - fizemos um grande jornal! Um semanário de reportagem e investigação, com qualidade, que "pedia meças" a qualquer órgão de comunicação social, nesse período entre Dezembro de 1999 e o primeiro trimestre de 2000.


Dois anos depois, em Almada, recomeça com o projecto Debaixo do Bulcão. António Vitorino esse fanzine de poesia surge como uma alternativa ou simplesmente como uma forma de contestação à política editorial convencional?

Bem, o Debaixo do Bulcão era uma ideia que vinha da década de 80, que foi concretizada no ambiente muito favorável da Almada dos anos 90, e do qual nunca desisti mesmo enquanto estive em Portalegre.
Em Março de 2000 vim propositadamente a Almada fazer o lançamento de uma edição. Na origem, não o idealizei como uma forma de contestação. Era, de facto, uma alternativa: já que, apesar de haver tanta gente a escrever poesia (ou coisas aparentadas com poesia) e se não há maneira de a publicar pelas vias convencionais, que tal fazer uma edição policopiada (um fanzine), tal como muitos outros fizeram nos anos 80?

Eu, que era frequentador muito assíduo da Casa da Juventude de Cacilhas (o Ponto de Encontro) e de outros locais por onde andava uma certa intelectualidade, muito jovem e muito boémia, dessa década de 90, ouvia frequentemente, nesses locais, o António Boieiro queixar-se de que "ninguém declama poesia, ninguém publica poesia, a poesia está morta, e ainda dizem que somos um país de poetas!".
Ora, como eu já andava há muito com vontade de editar os meus poemas num fanzine, enchi-me de coragem e, numa dessas noites de 1996, junto-me numa mesa ao Tó Boieiro e ao João Mota (que também conhecia como poeta) e faço-lhes a proposta de lançar, na feira do fanzine desse ano, uma publicação só de poesia.

É importante lembrar que isso só foi possível porque a Câmara de Almada organizava, anualmente, a Feira Internacional do Fanzine, naquele espaço do Ponto de Encontro. E o responsável pela feira (o Pedro Morgado) estava sempre disponível para apoiar as novas ideias que entretanto iam aparecendo.

Acha que os blogues vieram, de certo modo, retirar força à imprensa escrita?

Não. A imprensa escrita já estava a perder força antes da massificação dos blogues. Mas, tal como no caso das rádios, não encontro respostas fáceis para esse fenómeno. Penso que a imprensa escrita está há demasiado tempo a tentar redefinir o seu espaço (refiro-me aos órgãos nacionais, de referência). Já os gratuitos ocuparam, e muito bem, um nicho de mercado que estava livre. E o sucesso dessas publicações é, na minha opinião, a prova de que a imprensa escrita continua a ter razão de existir.
Se tem ou não futuro, é outra questão, que não discuto…

Podemos considerá-lo um jornalista do ciberespaço?

Não. A internet é para mim apenas uma ferramenta, entre outras, que me ajuda a trabalhar e a divulgar o trabalho que faço. Para ser um jornalista do ciberespaço, teria de estar a trabalhar numa empresa que se dedicasse a essa actividade (ou ser proprietário de uma). Não tenho tal veleidade. Trabalho para um jornal. Sempre que me for possível, divulgo o trabalho que faço nesse jornal, também via internet.


Descreva-nos um pouco do poeta que já foi editado e o dramaturgo que ainda não se representou!

Caro Artur Vaz: se me custa falar de mim próprio enquanto jornalista, mais difícil é descrever-me enquanto poeta. Mas vou tentar.
Comecei a publicar no DN Jovem - em 1984, se não me engano - embora eles não gostassem muito da minha poesia, e com razão. (Aprendi a escrever, escrevendo e confrontando o meu trabalho com a opinião dos leitores - e é por isso que julgo ser importante dar a ler o nosso trabalho, e é por isso que acredito na importância social de projectos como o Debaixo do Bulcão... ou o DN Jovem, no seu tempo).

Escrevi dois textos para teatro, mas não me considero um dramaturgo. Esses textos (aos quais não chamo "peças de teatro", porque considero que, enquanto estiverem apenas no papel não passam de possíveis guiões) foram redigidos em dois momentos muito específicos da minha vida e reflectem o meu estado de espírito nesses momentos.
O primeiro, que teve duas versões (uma completada em 1992 e outra, revista e aumentada, em 1994), chama-se O Quarto Minguante. É um texto muito inspirado por dois espectáculos que vi nos anos 80, e que muito me marcaram. Uma "performance" estática sobre Fernando Pessoa (não me lembro já quem era o autor e protagonista); e um extraordinário espectáculo do Teatro da Cornucópia, "Oratória", que esteve em cena no Teatro do Bairro Alto, em 1985.

O Quarto Minguante é um drama quase esquizofrénico, no sentido em que existem três personagens que são três estados de espírito da mesma pessoa, e ainda um grupo de actores/espectadores, que representam o espírito crítico dessa mesma pessoa (o "olhar de fora" da pessoa sobre si mesma). Mas é muito despojado, não apresenta soluções nem defende nenhuma "tese". O outro texto chama-se "Romance de Eunice e Agapito". Foi escrito em resposta a um desafio: depois de escrever algo tão "negro" como O Quarto Minguante, propus-me escrever uma comédia. As pessoas a quem falei nisso duvidavam que eu o conseguisse fazer. E então, meti mãos à obra, e escrevi um texto que é uma "paródia" ao Romeu e Julieta (de Shakespeare), mas passado na actualidade, numa família disfuncional (e estranhamente semelhante à minha).

Em que é difere o António Vitorino dos poetas Affonso Gallo e Baltasar Mingo?

Em Affonso Gallo é a minha faceta mais tradicionalista. Gosto muito de autores "clássicos" como Fernão Lopes, Gil Vicente, Sá de Miranda, Camões, Bocage. Comovo-me a lê-los. Tentei, muitas vezes, escrever poesia rimada e ritmada. Quando, finalmente, consegui escrever um soneto que considerei aceitável, não o quis assinar como António Vitorino (porque era um poema em que, de alguma forma, expunha os meus sentimentos). Então, lembrei-me assinar Affonso Gallo.


Quanto ao Baltasar Mingo, no fundo não passa de uma piada. Já que muita gente considera a minha poesia uma coisa "prosaica", resolvi inventar um personagem que usa, ou tenta usar, todos os "truques" poéticos que alguns dos "grandes" poetas contemporâneos usam: linguagem densa, obscura e, se possível, difícil de decifrar – para parecer uma coisa mais "literária". Embora a mim, me pareça esquizofrénica.
Os primeiros poemas que assinei como Baltasar Mingo, fiz quando estava a morar em Setúbal, numa noite de nevoeiro, quando regressava ao sótão onde então residia, numa casa junto ao Jardim do Bonfim. Achei aqueles poemas tão diferentes de tudo o que tinha escrito até então, que resolvi assinar com pseudónimo. Foi assim que "nasceu" o Baltasar Mingo.

Porque razão diz que a sua vida não dava um filme; mas sim um festival de cinema?

Essa frase é de um programa do Herman José, nos anos 90. Usei-a no meu blogue Coisitas do Vitorino, como uma piada (aliás, o título do blogue já é uma piada).
Mas creia, Artur Vaz, a minha vida talvez desse, se não um festival de cinema, pelo menos um filme português, chato, comprido e com algumas partes cómicas. Ou uma peça de teatro, quiçá!...


Para terminar esta agradável "vitorinice", gostaríamos que deixasse aqui registada uma "coisita", que sirva de reflexão aos jovens!

Aos jovens? Eu sei lá! Acho que ainda não tenho estatuto suficiente para dar lições a ninguém. Mas, enfim, ficam estas coisitas: lutem pelos vossos direitos; sejam vocês próprios; se tiverem algo pata fazer ou para dizer que possa chocar a moral ou o senso comum, manifestem-se e não se deixem intimidar com as pressões da "maioria".

Mas, por favor, não alinhem no mau gosto de chocar só por chocar – disso já tivemos muito e não serviu para grande coisa. Estejam sempre disponíveis para aprender com os mais velhos, com os mais novos e com os da vossa idade (portanto, aprendam tudo com toda a gente); nunca desistam de concretizar os vossos sonhos – lutem por eles e, principalmente, não cometam erros que outros (como eu) cometeram.

Sejam felizes e façam os outros felizes. Com trabalho, persistência e dedicação, conseguem. Essa é a parte mais difícil. Mas vale a pena

(Julho de 2008)

Entrevista de Artur Vaz
Fotografia de Rui Tavares
em
Almada, Gente Nossa - volume III
Edição Junta de Freguesia de Almada
Outubro 2011