sexta-feira, agosto 24, 2012

"A Violência na televisão e o bom pastor"


 (Texto de António-Pedro Vasconcelos, escrito em 1994 e publicado no livro "Serviço Público, Interesses Privados - o que está em causa na polémica da RTP", edição Oficina do Livro, Lisboa, 2003. As notas de rodapé são minhas.)


Com um humor desenvolto, o primeiro-ministro (1) afirmou, há dias, que se recusava a "tributar o disparate". E acrescentou, sorridente, qualquer coisa como isto: "se o disparate pagasse imposto, eu deixava de ter problemas com o Orçamento". Esqueceu-se apenas de mencionar que, nesse caso, teria que começar por tributar os membros do seu próprio Governo.

A iniciativa do buliçoso ministro Marques Mendes (2) de propor um pacto de conduta às televisões, é um belo exemplo de tolice e de demagogia. Quando a opinião pública se agita, como foi agora o caso, à volta de um problema que ele considera merecer a sua alta intervenção, o ministro, em pessoa, intervém: foi assim com os arquivos da RTP, por exemplo, em que despachou com firmeza as ordens absurdas e levianas que apenas formalizaram a anarquia com o selo avulso do disparate.

Decidiu agora o ministro da Propaganda mostrar-se sensibilizado, durante uns dias, com o problema da violência na televisão, partilhando as inquietações públicas da esposa do Presidente da República (3), com quem não convém abrir frentes gratuitas de combate político. Tomou chá com essa inteléquia chamada sociedade civil e posou para a comunicação social com os 3 responsáveis dos 4 canais (4), aconselhando-os, com a autoridade de um bom pastor, a que doravante moderassem as imagens de violência nos telejornais, evitassem traumatizar as crianças e se abstivessem de mostrar filmes com sádicas exibições de tortura física e lascivas contorções de prazer sexual.

O assunto ficou por aqui e por aqui ficará. Porquê?

Primeiro, porque nem o actual Ministro nem o ex-Primeiro-Ministro e o Ex-ministro da Educação, hoje promovidos a presidentes de canais privados (5), estão genuinamente preocupados com o assunto, e estes, mesmo que estivessem, não iam perder audiências só para satisfazer as generosas preocupações da Dr.ª Maria Barroso, nem que ela fosse a Madre Teresa de Calcutá.

Segundo, porque, tal como foi proposto, o problema de combater a violência na TV é um enunciado vazio, e por isso tão consensual e inútil como proclamar que se deve combater o insucesso escolar ou eliminar a corrupção.

A melhor maneira de evacuar um problema, já se sabe, é reduzi-lo a uma fórmula simples, nobre e atraente, mas evasiva. Quando o Ministro gravemente se dispõe a mostrar-se preocupado com "a violência na televisão" está a solenizar um equívoco, deixando que se misturem no mesmo saco roto, vários e complexos problemas.

O primeiro é que a televisão comercial (isto é, a televisão que nos chega gratuitamente a casa e que nos é, de facto, paga pelos anunciantes a troco de comprarmos os seus produtos), é em si uma violência. A sua regra é atrair audiências, isto é, agradar às maiorias, o que é, no entender desse fino intérprete das pulsões populares que é Emídio Rangel, a forma suprema da democracia. A partir daí, vale tudo: é bom o que rende anúncios.

O segundo, é que convém, metodicamente, separar o telejornal do resto da programação, e que a informação está, por lei (e por imposição da directiva comunitária) impedida de ser interrompida por anúncios em blocos inferiores a meia-hora. Coisa que nenhum canal cumpre, mas a que o Governo zelosamente fecha os olhos (6).

Que importância tem isto? Tem toda. Desde que a informação pode servir também para atrair comerciantes, a sua função perverteu-se: tem que render. E o que rende é o pivot avisar, por exemplo, antes do bloco publicitário: "não saia daí porque na segunda parte vamos mostrar-lhe a reportagem do pai que matou o filho à sachada"; ou: "não perca, logo a seguir ao intervalo, as imagens do atentado suicida em Jerusalém, cujo primeiro balanço aponta para 20 mortos carbonizados"; ou então: "depois da publicidade, vamos ainda falar-lhe do último escândalo da família real inglesa". (ver nota 6)

Se a lei impede a interrupção dos serviços informativos por blocos publicitários, em períodos inferiores a meia-hora (e, a meu ver, a própria limitação horária já é uma cedência), não é por um capricho malévolo do legislador, mas porque é essencial que a informação não seja condicionada por qualquer perversão comercial, mas apenas pela preocupação de assegurar ao público a melhor qualidade do serviço. Foi isso que fez, por exemplo, a BBC. Hoje, se a informação televisiva em Portugal se degradou a níveis preocupantes foi, em parte, porque o Ministro que a tutela tem ao seu dispor um instrumento dissuasor - a lei - que, por ignorância ou hipocrisia, se coíbe de usar ou de mandar aplicar.

Dito isto, condenar a violência da informação, sem algumas cautelas, é abrir a porta às mais graves perversões. Onde está a violência? No que acontece ou no que se transmite? No que se passou no cemitério de Díli ou na sua exibição? Nas imagens transmitidas em directo pela CNN para o mundo inteiro, da excisão do clitóris numa criança muçulmana, ou nessa hedionda mutilação, corrente entre os seguidores de Maomé, e a que o Ocidente fecha os olhos? O que é chocante: o que se passa ou o que se mostra?

Não fazer esta elementar distinção é querer resolver o problema da violência, que é antigo como o mundo (haverá alguma coisa mais violenta do que a Bíblia?), imitando os tiranos da antiguidade, que mandavam cortar as mãos aos mensageiros das más notícias.

Na televisão salazarista não havia violência, como não haveria na de Ceausescu, porque ela repousava sobre uma violência absoluta que era a privação geral da liberdade.

O problema, na informação como no resto, não está em mostrar a violência - o que é legítimo e necessário, por vezes mesmo pedagógico - mas na sua possível obscenidade, e esse é o risco que corre com frequência a televisão comercial e a imprensa de escândalos (mas essa, ao menos, está identificada).

Quando as cadeias americanas se batem para comprar o direito de transmitir uma execução em directo, ou uma televisão brasileira filma o suicídio de uma jovem em directo e transmite, também em directo, a notícia aos pais, estamos no domínio da obscenidade, isto é da exibição despudorada da morte ou da dor de alguém, sem outra justificação que não seja a exploração mórbida do voyeurismo de todos nós. Pela simples e demolidora razão de que isso vende (7).

Digamo-lo sem rodeios: a programação das televisões comerciais é, sobretudo em países sem recursos como o nosso, tendencialmente obscena. Obsceno foi, por exemplo, o "Perdoa-me" como o é o "All you need is love"(8), porque exploram sentimentos ingénuos para os transformar em receitas publicitárias. É barato e dá dinheiro, e o dinheiro não tem moral.

Outra coisa é a ficção. Tentar eliminar ou neutralizar a violência que toda a ficção traz consigo é abrir a porta a todas as censuras: não há nada mais violento que Édipo (que mata o pai e dorme com a mãe) ou Medeia (que mata os filhos), para não falar das tragédias de Shakespeare (que são um inventário de todos os crimes e perversões e de todas as paixões ruins). Ignorá-lo é ignorar a função catártica da ficção, sobre a qual o mundo ocidental fundou a sua superioridade sobre as civilizações que a reprimiram.

Dito isto, e para tentar contribuir utilmente ao debate, termino com duas sugestões sumárias:

1 - A televisão generalista tem uma componente informativa e outra de programação, diversificada. Os jornalistas, como os médicos ou os advogados, devem reger-se por códigos deontológicos que fundam a sua própria credibilidade e a credibilidade dos órgãos de informação onde trabalham. Além disso, existe a lei que proíbe os abusos de liberdade de imprensa. Aplique-se.

2 - Na informação, como no resto, prefiro sempre os riscos da liberdade à ditadura dos censores. A lei nº 58/90 que define o regime da actividade da televisão em Portugal (nomeadamente, o art.º 6º, o art.º 17º e o art.º 28º, nº4, que remete para o art.º 11º, nº5 da Directiva), e que o Ministro persiste em ignorar, chega para prevenir os abusos da programação. Arranje-se, isso sim, quem a aplique. Com celeridade e rigor.


António-Pedro Vasconcelos

28 de Novembro de 1994



Notas:

(1) Cavaco Silva, primeiro-ministro entre 1985 e 1995.

(2) Em 1994, Marques Mendes era ministro-adjunto do primeiro-ministro.

(3) Maria Barroso. O Presidente da República era, então, Mário Soares.


(4) Na época existiam em Portugal apenas canais generalistas, emitidos em sinal aberto via feixe hertziano. A RTP (canal 1 e 2), a SIC e a TVI.

(5) Respectivamente, Pinto Balsemão (SIC) e Roberto Carneiro (TVI)

(6) Neste aspecto, a realidade ter-se-á alterado desde 1994, mas apenas no que diz respeito à televisão generalista emitida em canal aberto ou, eventualmente, aos canais temáticos transmitidos por cabo. Na internet a situação é pior ainda do que a descrita neste texto. Quando se tenta aceder a vídeos com notícias é frequente que esses vídeos sejam precedidos de anúncios publicitários, sem que o utilizador (cidadão transformado em consumidor à força) tenha, pelo menos, a opção de ignorar essa publicidade e ir directamente à notícia que lhe interessa.

(7) Hoje, na internet, multiplicam-se os sites que exploram de forma "despudorada" esses fenómenos, "sem outra justificação que não seja a exploração mórbida do voyeurismo de todos nós". São sites que recolhem imagens de assassinatos, execuções e torturas e as publicam, na internet aberta e sem restrições. Mas, mais do que isso, tentam vender o seu produto (esses vídeos) em canais populares como o youtube. Fazem-no de forma indirecta: convidado pessoas com contas no youtube (normalmente jovens ou mesmo crianças) a filmarem-se a ver esses vídeos, a meterem a sua reacção no youtube, de preferência com "link" para o site onde tais vídeos se encontram disponíveis. Dessa forma contornam as regras do youtube e ganham novos "clientes" (e os seus alvos são jovens e crianças - repito para que não fiquem dúvidas); ao aumentar o número de visualizações e ao tornar o site mais visível tornam-no também mais apetecível para os anunciantes. É um ciclo de negócio que se alimenta de morte, degradação e absoluta falta de respeito pela dignidade humana.

(8) Programas populares de grande audiência na televisão privada em Portugal durante a primeira metade da década de 90. Compare-se a "receita" destes programas ("exploram sentimentos ingénuos para os transformar em receitas publicitárias") com muitos conteúdos que circulam hoje na internet, particularmente em "redes sociais" como o facebook, onde se exibem marcas comerciais de forma aparentemente não comercial, disfarçada de piadas políticas ou nobres causas humanitárias - um fenómeno que os publicitários conhecem como "marketing viral".