domingo, novembro 24, 2013

O protesto e as sequelas (Janeiro - Maio de 2001)




Na manhã de 4 de Janeiro de 2001, o empresário Manuel Subtil barricou-se, com a esposa e a filha, nas instalações da RTP em Lisboa, ameaçando fazer explodir o edifício. Protestava "contra o facto de a RTP ter transmitido uma reportagem a 19 de Junho de 1990 sobre alegadas burlas na legalização de emigrantes"o que terá levado ao encerramento da sua empresa.

Este protesto em defesa de interesses individuais rapidamente começou a ter seguidores e imitadores (o que, de resto, acontece frequentemente sempre que este tipo de acções é amplificada pelos noticiários). Nos meses seguintes, foram vários os casos de "barricados", exigindo resolução de problemas de índole privada ou pessoal. Todos eles tentando beneficiar de cobertura mediática.

Dois desses casos aconteceram no distrito de Setúbal. O Sem Mais Jornal, semanário do distrito, procurou entender (e ajudar a entender) o fenómeno, mais do que simplesmente o noticiar. Pediu opinião a especialistas e, na edição de 10 de Maio de 2001, publicou a reportagem que reproduzo acima (clicar nas imagens para ampliar e ler o texto)

segunda-feira, setembro 30, 2013

Eleições autárquicas no concelho de Almada: comparação 2013-2009


Votação para a Câmara Municipal:

Votação para a Assembleia Municipal:

Resultados oficiais, obtidos no site http://autarquicas2013.mj.pt
No mesmo site encontram-se os resultados da votação para as assembleias de freguesia. 

Nota: não apresento os resultados comparativos das votações para as assembleias de freguesia, mas apenas porque não me parece muito rigoroso comparar a soma dos resultados obtidos nas freguesias em 2009 com os resultados das eleições para as freguesias "unificadas".

sexta-feira, julho 05, 2013

Sorria! Está a ser manipulado.


Quando decide comprar este ou aquele produto, aderir a este ou àquele serviço, ver este ou aquele filme, votar neste ou naquele candidato... está a decidir em consciência? A escolher o que é, de facto, melhor para si? E pondera as consequências que essa escolha terá na sua vida e na vida dos que lhe são próximos? Tem a certeza?

Não quer pensar melhor no assunto?

Porque, na verdade, não é bem assim que as coisas funcionam.

A maior parte das decisões que tomamos (e entre elas as mais importantes) são accionadas por mecanismos inconscientes. Decidimos antes de pensar e, quando pensamos no que decidimos (e, normalmente, só pensamos depois de termos decidido), estamos apenas a justificar para nós próprios (e para os outros, se for caso disso) a nossa decisão irracional.

Surpreendido? É natural: tudo isto são afirmações que contradizem muito do que aprendemos durante décadas. Mas os processos das decisões irracionais estão, agora, muito bem estudadas pelas ciências neurológicas. E esse conhecimento tem vindo a ser aplicado na prática, em coisas que afectam a nossa vida quotidiana e, consequentemente, condicionam os nossos comportamentos enquanto indivíduos e enquanto sociedade.

Uma das áreas de estudo que aplicam as descobertas feitas pelos neurologistas sobre a maneira como os nossos cérebros funcionam tem um nome até muito sugestivo: o neuromarketing!

Há quem fale também em neuroeconomia e mesmo neuropolítca - aplicações das ciências neurológicas à economia e à política. Mas, neste artigo, vou referir-me apenas ao neuromarketing e, mais especificamente, a um livro que é um verdadeiro manual de instruções: 'Neuro Marketing - o Centro Nevrálgico da Venda' (edição portuguesa: Smartbook, Lisboa, 2009).

Escrito por dois homens com vasta experiência na área - os franceses Patrick Renvoisé e Christophe Morin - 'Neuro Marketing' destina-se a ensinar os profissionais da publicidade e das vendas, ajudando-os a passar de uma abordagem intuitiva para outra mais metódica, fundamentada nas descobertas mais recentes das ciências neurológicas.

É, portanto, um autêntico manual de manipulação. Mas (até por isso mesmo) indispensável para quem queira entender os processos com os quais somos manipulados - o que, penso que concordarão comigo, é o ponto de partida nos defendermos da manipulação.

Os autores começam por definir as várias "valências" do cérebro humano (embora de forma resumida, mas eficaz para a mensagem que pretendem transmitir) - temos um "cérebro primitivo", que processa a intiuição (numa "divisão" a que os autores chamam "cérebro intuitivo") e as emoções (o "cérebro emocional"). Por cima deste, muito mais recente e comandado pelo "cérebro primitivo", temos o neocortex, ou "cérebro racional". Até há relativamente pouco tempo dava-se importância exagerada ao "cérebro racional", por se julgar que era este que comandava, filtrava os impulsos do subconsciente e tomava as decisões. Mas, pelo menos desde a década de 1980 e, particularmente a partir da década seguinte, após a publicação do livro "O Erro de Descartes", do neurologista português António Damásio, sabe-se que não é exactamente assim que funcionamos.

No processo de decisão, as emoções aparecem antes da razão. Mas não só: descobertas subsequentes têm demonstrado que as emoções são mesmo mais importantes e fundamentais para o processo de decisão. Essas emoções são processadas pelo "cérebro primitivo" antes de "chegarem" ao neocortex, e são processadas durante mais tempo do que se imaginava, e as consequências desse processamento "irracional" são, para o resultado final, maiores do que se julgava. (Nota: os processos são, na verdade, mais complexos, e eu estou a usar uma linguagem simplificada, tal como os autores do livro. Para entender estes processos com mais rigor é aconselhável consultar obras especializadas).

"Os investigadores demonstraram que os seres humanos tomam as suas decisões de forma emocional, justificando-as depois racionalmente. Na verdade, as emoções são recebidas e processadas pelo cérebro intuitivo e a decisão final é tomada pelo cérebro primitivo", escrevem os autores, e acrescentam que "no seu livro 'How The Brain Works, o especialista do cérebro humano Leslie Hart observa: "Um grande número de descobertas indica que o cérebro primitivo é o comutador central que especifica que sinais irão para o cérebro racional e que decisões serão aceites".

Portanto, não é de estranhar a afirmação de que "a maioria de nós faz uma compra com base em emoções e, em seguida, justifica racionalmente as suas decisões".

Isso explica-se porque a publicidade (tal como outros tipos de marketing) apela à emoção e não à razão, e "O cérebro primitivo reage fortemente às emoções. As neurociências demonstraram claramente que uma emoção provoca uma reacção química no seu cérebro, a qual influencia directamente a maneira como você processa e memoriza as informações. Pode simplesmente lembrar-se de acontecimentos e informações que não vão muito além do curto prazo, a menos que experimente aquilo que os cientistas apelidam de "forte cocktail emocional", ou seja, o resultado das emoções quimicamente processadas pelo seu cérebro".

Partindo destas asserções, os autores do livro explicam (aos publicitários) e desvendam (aos seus alvos, que somos todos nós) alguns dos truques utilizados pelo "neuromarketing".

Em primeiro lugar, fazer o diagnóstico das frustações dos potenciais clientes. Leu bem: os autores não falam em necessidades, desejos ou aspirações do público-alvo, mas sim nas suas frustrações. E é a análise dessas frustrações, seguida de processos tendentes a convencer o potencial cliente de que há uma solução adequada ao seu problema que vai "despoletar" o impulso da compra.

Isto, trocado em miúdos, é mais ou menos assim: decidimos em função de emoções (como já vimos atrás), mas as emoções mais fortes têm a ver com os nossos medos; diagnosticando esses medos, conforme as situações concretas em que se apresentam (um potencial comprador de um telemóvel ou computador portátil tem medo que esse aparelho seja tão frágil que se estrague da primeira vez que cair ao chão; um investidor tem medo de perder o seu investimento...) podemos apresentar a solução que pareça mais adequada (comparando um computador que cai ao chão e fica intacto com outro que se parte; mostrando um investidor feliz a pescar num aquário cheio de peixes em contraste com outro, isolado numa praia deserta, sem sinal de peixes). O que se está a vender não é, necessariamente, a melhor solução (não se valorizam as qualidades do produto) mas sim a solução que melhor corresponde ao medo do potencial consumidor. Ou seja, o produto ou serviço que melhor apazigua o "medo" - a "solução" que "resolve" o "problema".

Claro que isto se aplica mesmo que o "problema" não seja um problema real, mas sim inventado pelo próprio marketing - a velha técnica de inventar a doença pare depois vender a cura. Os autores do livro não vão ao ponto de sugerir tais práticas, naturalmente. Mas citam uma frase do publicitário David Ogilvy que me parece muito apropriada: "Se quer vender extintores, ateie o fogo em frente dos potenciais clientes".

Reagimos, então, a problemas imaginários, que não existem de facto? Sim, se os percepcionarmos como se fossem problemas reais! E decidimos, então, reagindo apenas a ilusões? Sim, infelizmente decidimos assim, muitas vezes!

Aliás, os autores não têm duvidas em afirmar que "as histórias têm mais impacto que os dados racionais mais fundamentados".

Como assim? Mais uma vez, devido às características do nosso "cérebro primitivo", que se desenvolveu durante um longuíssimo período em que não havia écrans, nem tecnologia ou civilização, tal como a entendemos hoje. E que se adaptou às necessidades desses tempos ancestrais (tempos que formam, de longe, a maior parcela da evolução da espécie humana, com tudo o que isso significa e implica).

"Mas por que é que uma acção tão banal como contar uma história produz um tal efeito? Mais uma vez, por causa do cérebro primitivo.

No entanto, não somos nós, pessoas adultas, indivíduos racionais? Ora, quando vemos um filme, sentimos emoções, mais ou menos intensas, que nos fazem ficar tristes, alegres, melancólicos, revoltados ou chorosos. Sabemos, todavia, que se trata de ficção. O herói não morreu de verdade e o bebé não perdeu realmente os pais.

E no entanto... o nosso cérebro racional tem consciência de que é tudo ficção, mas o maestro, o cérebro primitivo, não distingue entre a realidade e uma história bem urdida.

O cérebro primitivo liberta então uma torrente de hormonas que tanto faz com que as lágrimas nos caiam cara abaixo como desencadeia outras respostas fisiológicas: garganta apertada, mãos húmidas, aumento súbito da tensão arterial, aceleração do ritmo cardíaco, etc.

As boas histórias têm mais impacto no cérebro primitivo e no nosso inconsciente do que os dados puramente racionais."


E isso, nas mãos de publicitários (ou propagandistas) hábeis, pode ser uma arma extremamente poderosa.

Cuidado, então, com as histórias que deixamos que nos contem...

Claro que, para nos defendermos eficazmente de toda esta ofensiva publicitária (e propagandística) altamente sofisticada, precisamos primeiro de dar o passo mais desconfortável: assumir que não, não somos aquelas pessoas muito esclarecidas que não se deixam enganar facilmente. Por muito que isso nos custe, estamos todos vulneráveis à manipulação. A boa notícia é que, se soubermos quais são os pontos vulneráveis da nossa percepção, podemos defendê-los melhor - e sim, é possível conhecer esses nossos pontos fracos, e defendê-los. Pelo menos até onde a ciência, no seu estado actual, nos permite fazê-lo.

A ciência não é, em si, uma coisa "boa" ou má". Pode é ser aplicada com boas ou más intenções. E nisto, como em tantas outras áreas da nossa vida, depende apenas de nós aceitarmos o que não nos prejudica e rejeitarmos o que nos é nefasto.



segunda-feira, abril 29, 2013

"Moralismos" ou a arte de bem enfiar a cabeça em qualquer areia (como nem as avestruzes fazem, porque não são assim tão estúpidas)

- O nosso problema é o medo?

- Pois é.

- E as mensagens da televisão, do cinema, dos jogos de vídeo?...

- Isso não tem importância nenhuma!

- Mas a violência constantemente presente, e repetida, na televisão, no cinema, nos jogos de vídeo, faz com que as pessoas fiquem assustadas e com medo.

- Mentira. Não acredito. Prova!

- Ok. (apresento uma quantidade de "provas", quer dizer, estudos científicos feitos por várias personalidades e entidades independentes, ao longo de muito tempo, devidamente fundamentadas *) aqui está a prova.

- Ah pois... (assobia para o lado)

- Portanto, se os conteúdos da televisão, do cinema e dos jogos de vídeo influenciam o comportamento das pessoas e induzem-nas a ter medo (como já demonstrei), não podemos simplesmente assobiar para o lado e dizer que não têm importância nenhuma, pois não?

- Então e queres o quê, que eu veja menos filmes, lol?

- Por exemplo. Ou então, pelo menos, fazer um debate sério sobre o assunto.

- Lá estás tu a ser moralista.



(*) as provas:

Does Violent Media Make People Violent, or Just Scared? http://www.youtube.com/watch?v=AgWfLnX3U28

THE MEAN WORLD SYNDROME - Media Violence & the Cultivation of Fear

http://www.mediaed.org/cgi-bin/commerce.cgi?preadd=action&key=143&template=PDGCommTemplates%2FHTN%2FItem_Preview.html

Society's Storyteller: How TV Creates the Myths by which we Live
http://www.medialit.org/reading-room/societys-storyteller-how-tv-creates-myths-which-we-live

Reclaiming Our Cultural Mythology - "Television's global marketing strategy creates a damaging and alienated window on the world", George Gerbner

http://www.context.org/iclib/ic38/gerbner/

Media Violence and Kids

http://www.youtube.com/watch?v=7CXqZWW9yRQ

Hollywood and the war machine
http://www.youtube.com/watch?v=v66HM5ILiwk

GAME OVER - Gender, Race & Violence in Video Games 

http://www.mediaed.org/cgi-bin/commerce.cgi?preadd=action&key=205&template=PDGCommTemplates%2FHTN%2FItem_Preview.html

Army Training Video Games Tech In Homes Of Kids Today
http://www.youtube.com/watch?v=ZUeP2i-VVyg&feature=youtu.be

Army Trains W/ Call Of Duty
http://www.youtube.com/watch?v=J14wdIsyYqk&feature=youtu.be

WRESTLING WITH MANHOOD - Boys, Bullying & Battering
http://www.mediaed.org/cgi-bin/commerce.cgi?preadd=action&key=216&template=PDGCommTemplates%2FHTN%2FItem_Preview.html

Violência e empatia: considerações sob o ponto de vista da psicologia cognitivo-comportamental
http://gabriele-albuquerque.blogspot.pt/2011/03/violencia-e-empatia-consideracoes-sob-o.html

Fighting “Mean World Syndrome”

http://www.wired.com/geekmom/2011/01/fighting-mean-world-syndrome/

(Etc.)

quinta-feira, abril 25, 2013

"Cinco Conversas com Álvaro Cunhal"

Publicado em 1999 pela editora Campo das Letras, "Cinco Conversas com Álvaro Cunhal" nasceu de um pedido de entrevista feito pela jornalista Catarina Pires, ao qual o dirigente histórico do PCP (que não era já secretário-geral desde 1992) respondeu: "que tal fazermos antes um livro?".

A autora (ou co-autora, como prefere apresentar-se) explica, no prefácio: "Eu já conhecia o Álvaro. Fiz um trabalho sobre ele para a Universidade e escrevi um artigo sobre os Desenhos da Prisão para a Notícias Magazine. Depois surgiu a ideia de o entrevistar. Pedi-lhe a entrevista. Ele aceitou. Um dia depois recebo uma chamada em casa. Era o Álvaro: "E se em vez de uma entrevista, escrevessemos um livro de conversas?". Surpresa total. Eu pedi-lhe uma entrevista, ele deu-me um livro."

E assim foi. Um livro com 5 conversas, agrupadas por temas: A História; O Mundo; A Política; A Arte; As coisas da vida.

Nas conversas, Álvaro Cunhal não foge a nenhuma questão, por incómoda que seja e, mais do que isso, ele próprio desafia várias vezes a entrevistadora a "incomodar" - por exemplo, quando se refere ao colapso da União Soviética e dos países socialistas do Leste da Europa, à crítica e autocrítica do que estava mal no regime soviético (acompanhada, neste caso, com o necessário elogio ao que a experiência do poder socialista significou como avanço civilizacional relativamente ao capitalismo), e depois, em aspectos como

- o exercício do poder:

"No que respeita à organização da sociedade e ao Estado, as lições da história obrigam a prevenções. O poder está muito viciado, o poder defende-se, o poder corrompe e é susceptível de corromper. O abuso de poder é fácil, nas instituições, na sociedade, nos órgãos de poder, em qualquer aspecto da vida social. Também nos partidos. É necessário impedir-se e pode impedir-se um poder assim concebido e realizado. Como? Com formas e mecanismos democráticos de fiscalização, incluindo por parte daqueles sobre quem o poder é exercido. Seja no Estado, seja na sociedade, seja na família, seja nos partidos."

- a visão exageradamente optimista e determinista que julgava ser possível mudar comportamentos adquiridos na ordem social definida pela luta de classes e pela desigualdade, apenas mudando as estruturas políticas e sociais:

"Nesta questão há qualquer coisa que, particularmente os comunistas, temos de aprender com o século que agora termina. Tomar consciência de que houve sempre uma avaliação irrealista e uma esperança irrealista em que uma transformação social, pela qual fossem liquidadas as grandes desigualdades, as grandes injustiças, as grandes misérias e flagelos do capitalismo, eliminaria causas sociais determinantes da formação e conduta negativa do ser humano, e podia levar à criação do homem novo num sentido geral da população.

Se a ideia, assim simplificada, se mostrou irrealista, concretizou-se entretanto na conduta e na vida de milhões de seres humanos empenhados nas transformações sociais libertadoras realizadas por grandes revoluções. Foi o caso da Revolução de 1917, que numa fase inicial e em vários momentos do Estado socialista, assim como muitas outras revoluções socialistas, democráticas, nacional-libertadoras que se deram no século XX, criaram centenas de milhares, mesmo milhões de seres humanos, de homens e mulheres, que deram tudo de si incluindo a própria vida. O mesmo na luta clandestina contra a ditadura fascista. O mesmo na Revolução de Abril. Esta ideia, que continua exacta, a do homem novo nestes termos relativos, foi utópica quanto à sua generalização à sociedade..."


Uma das questões mais interessantes do livro (na minha opinião, claro) diz respeito ao 25 de Abril e ao processo revolucionário. Lutando muito assertivamente (e bem!) contra a ideia muito difundida de que o 25 de Abril não teria sido uma revolução, Álvaro Cunhal lembra que, em pouco mais de ano e meio, por acção das forças revolucionárias, a sociedade portuguesa, as suas instituições e a sua vida política sofreram (ou beneficiaram de) transformações profundas e tão sólidas que demoraram décadas a ser desmanteladas pela ofensiva contra-revolucionária.

E dá exemplos, que não vou mencionar exaustivamente (leiam o livro, ora!), mas de que destaco o que diz respeito à Reforma Agrária:

"A criatividade dos trabalhadores e das massas populares em luta na revolução de Abril é um grande ensinamento. Para a Reforma Agrária na região de latifúndio do sul, tinhamos as experiências da União Soviética, kolkozes e sovkozes - cooperativas ou herdades colectivas -, experiências seguidas noutros países. Pareceu-nos que essas experiências podiam ser a solução e pusemos no programa. E no fim de contas, na realização da reforma agrária com a revolução de Abril, não resultou nem uma nem outra. As UCP / Cooperativas foram uma criação original dos trabalhadores portugueses. Eram unidades de trabalhadores com uma administração democrática e colectiva. Criaram-se cerca de 550 Unidades Colectivas de Produção, abrangendo um total de centenas de milhares de hectares de terra e milhares de postos de trabalho. Diversificaram-se as culturas, aumentou a produção agrícola e pecuária, introduziram-se máquinas, construíram-se instalações e oficinas, realizou-se uma notável obra social e cultural. Uma obra extraordinária, sob o fogo da reacção e de sectores do poder militar e político. Vinham delegações da União Soviética, da Bulgária e de outros países. Visitavam uma UCP e perguntavam: Isto é uma herdade do Estado ou uma cooperativa? Não era uma coisa nem outra. E admiravam-se dos resultados alcançados.

Catarina - E depois o poder político destruiu tudo?

Álvaro - Destruiu, levou alguns anos a destruir, mas acabou por destruir.
As grandes revoluções e as suas conquistas não foram só obra dos chefes, dos dirigentes, dos órgãos de poder instaurados. Nós, os comunistas portugueses, compreendemos uma revolução que se propõe realizar profundas transformações progressistas, não só com o apoio do povo, mas com o seu empenhamento, entusiasmo, criatividade e coragem."


E, porque nem tudo neste livro é política no sentido restrito da palavra (nem poderia ser, em conversas com uma personalidade tão rica e multifacetada como era a de Álvaro Cunhal):

"Catarina - Para não terminarmos a conversa sobre este tema em termos tão dramáticos e negativos e já que falaste em superstições - isto não tem muito a ver com a religião, mas sempre pergunto: acreditas na astrologia?

Álvaro - Bom, mudemos de rumo. Qual é o teu signo?

Catarina - Gémeos.

Álvaro - Oh diabo! Tu lês os horóscopos?

Catarina - Não.

Álvaro - Eu sou do signo Escorpião e tem sucedido que, quando chega o signo, recebo cartas amistosas escritas a sério ou a brincar, com o horóscopo apropriado. Num dos anos passados recebi um horóscopo de um astrólogo que já morreu e que me comunicava, e disse-o publicamente, que o horóscopo anunciava a minha morte nesse mesmo ano. Deve ter trocado os horóscopos.

Catarina - Felizmente. Se calhar era aquele que dizia todos os anos que a Ponte 25 de Abril ia cair e que o Sporting ia ser campeão...

Álvaro - Não sei se era o mesmo e não corro o risco de pronunciar-me sobre previsões ou insinuações futebolísticas, pois seria excessivamente arriscado. Deixo tal previsão aos astrólogos."


Por tudo isto "Cinco Conversas com Álvaro Cunhal" é um daqueles livros que frequentemente releio com prazer. E recomendo, claro!

quarta-feira, abril 24, 2013

"Os Americanos na Revolução Portuguesa (1974-1976)"

Os Estados Unidos da América foram apanhados de surpresa pelo levantamento militar (e depois popular) de 25 de Abril de 1974. Por isso, mantiveram primeiro uma posição de "esperar para ver". Mas, assim que entenderam o rumo revolucionário que os acontecimentos estavam a tomar, os responsáveis políticos norte-americanos preocuparam-se e tentaram influenciar o processo político português. Para Washington, era inaceitável que Portugal pudesse ter o Partido Comunista no governo, pois isso poderia desequilibrar a correlação de forças na Europa (onde os partidos comunistas de Itália e França tinham já, também, uma influência social e peso político e eleitoral crescentes).

No entanto, os próprios EUA estavam divididos quanto ao que fazer no caso português. O então secretário de estado, Henry Kissinger, defendia aquilo que ficou conhecido como a doutrina da "vacina": que os EUA apoiassem as forças contra-revolucionárias ou que deixassem mesmo os comunistas chegar ao poder, combatendo-os depois violentamente - dessa forma, pensava o famoso estratega da linha dura norte-americana, Portugal seria visto como um "mau exemplo" para o resto da Europa, e os comunistas portugueses como os agentes do caos.

Opinião diferente tinha o então embaixador fos EUA em Lisboa, Frank Carlucci. Homem mais ligado aos serviços "de inteligência" norte-americanos (e destacado para a embaixada em Portugal só após o 25 de Abril, para "lidar com a situação" ao seu jeito), preferiu combater a revolução apoiando os "moderados" - particularmente Mário Soares e o Partido Socialista. E foi essa a tendência que vingou.

São estas, em resumo, as ideias defendidas por Tiago Moreira de Sá, na investigação jornalística que publicou no livro "Os Americanos na Revolução Portuguesa (1974-1976)" (Editorial Notícias, 2004).

Escreve o autor: "os acontecimentos de Lisboa coincidiram com um momento em que o bloco ocidental enfrentava um cenário de crise no flanco sul da NATO, isto é, no Mediterrâneo, fazendo temer pela perda do controlo deste importante ponto estratégico. A oriente, eclodia o conflito de Chipre entre a Grécia e a Turquia, dois membros da NATO, e o subsequente início de um processo de transição de regime em Atenas. A ocidente, o problema era colocado pela crescente probabilidade da chegada dos comunistas ao governo em França e Itália. Isto para além da incerteza quanto ao futuro da Espanha em transição de regime. O processo político português era visto em Washington como um factor potenciador desta crise no Mediterrâneo, uma vez que se temia que a chegada do PCP ao Governo, primeiro, e a possibilidade de instauração de um regime comunista, depois, podiam influenciar negativamente Roma, Paris, Madrid e Atenas, com o risco de toda a Europa do Sul se tornar comunista a prazo.
Os EUA só podiam estar preocupados com a evolução política do seu aliado do outro lado do Atlântico. No fundo eram os equilíbrios da guerra fira que podiam ser postos em causa pelos acontecimentos em Portugal, logo, também estava em jogo o interesse nacional de Washington"
(segundo a doutrina intervencionista norte-americana) "Deste modo, podia-se esperar tudo menos desinteresse norte-americano."

Entende-se, assim, a razão de os governos provisórios do período 1974/75 serem de tão curta duração: não apenas por problemas internos, do processo revolucionário em curso, mas também (ou principalmente) pela pressão e mesmo ingerência dos EUA.

"Washington (...) actuou prioritariamente em duas frentes. Primeiro, ameaçando directamente Portugal de expulsão da NATO, o que no fundo queria significar a sua exclusão do sistema ocidental. Era uma forma de pressão de alto grau de eficácia, uma vez que os dirigentes portugueses não podiam desconhecer a elevada dependência do País face ao Ocidente e as consequência políticas, económicas e de segurança que uma exclusão deste bloco poderia acarretar.
Segundo, ameaçando directamente a URSS com o fim do clima de desanuviamento Leste-Oeste(...)."

Isto num primeiro momento. Depois, os EUA passam também a intervir no plano interno com o apoio à oposição "moderada", que lhes podia garantir uma transição pacífica para uma "democracia ocidental", ou seja, capitalista.

Processo que o autor explica ao longo de 160 páginas, com recurso a importantes documentos da época (incluindo documentos do Congresso e do Governo dos EUA) e citando depoimentos de alguns dos intervenientes.

Em suma, um livro importante para entender aspectos menos claros (e normalmente ignorados, embora os papeis de Kissinger e Carlucci não tivessem passado despercebidos aos revolucionários da época - e este livro vem dar-lhes razão) do processo revolucionário e, principalmente, do processo contra-revolucionário subsequente ao 25 de Abril de 1974.

quarta-feira, abril 17, 2013

Banalização da violência ou do medo?

Debateu-se muito (e ainda se debate) a hipótese de a violência nos meios de comunicação social influenciar comportamentos violentos nos espectadores. É verdade que alguns estudos apontam nesse sentido (ver, por exemplo, o relatório 'The Influence of Media Violence in Youth'). Mas os casos de crimes ou actos de violência extrema por imitação do que se vê nos media são raros (os estudos que apontam para relação causa-efeito falam de outro tipo de violência, mais disseminada, menos intensa e menos espectacular).

A partir da década de 1960, George Gerbner, um investigador norte-americano, professor de Comunicação na Annenberg School of Communication, de Filadéfia, colocou uma hipótese ligeiramente diferente, e com implicações muito mais profundas. Segundo ele, o visionamento prolongado e repetido de actos de violência (real ou ficcionada) nos écrans não conduz a uma reacção causa-efeito imediata (ninguém "no seu perfeito juízo", como se costuma dizer, vai matar o vizinho só porque viu um assassinato na televisão) mas causa, sim, a ideia de que o mundo e as comunidades em que vivemos são mais perigosas do que são efectivamente. E o efeito disso é que as pessoas ficam mais receosas, mais desconfiadas - e mais facilmente aceitam a violência exercida sobre si ou sobre terceiros como forma aceitável de resolver conflitos e aceitam, também, que lhes retirem liberdades civis, para terem a segurança que, supostamente (ilusoriamente) lhes falta.

Isto foi objecto de estudos aprofundados, ao longo de anos. E deu origem ao que hoje é conhecido como "teoria da cultivação" (ou "do cultivo"). O efeito dessa exposição à violência nos media, demonstrado por Gerbner e colaboradores é conhecido como "síndrome do mundo mau".

 Em entrevista recente a um programa de rádio norte-americano, Michael Morgan, investigador da Media Education Foundation da Universidade de Massachusetts, explica, de forma sucinta mas bem fundamentada, os resultados dessa investigação.

Resultados que podem surpreender. Por exemplo, quando afirma que, para o efeito de medo e insegurança, o consumo de imagens reais ou ficcionadas é indiferente (têm ambas o mesmo efeito) ou que, quando se trata de exposição à violência nos media, pessoas de todas as idades e com níveis de educação diferentes estão vulneráveis na mesma medida.

Nota: encontram uma (tentativa de) tradução para português do principal conteúdo desta entrevista em
http://vitorinices.blogspot.pt/p/blog-page.html

quinta-feira, abril 11, 2013

Um desenho


Eu sempre achei que não tinha grande "jeito" ou "talento" para desenhar. Bem tentava, mas, durante muito tempo, não saía nada que se aproveitasse.

Mesmo depois de vários anos a aprender no atelier de artes gráficas do Centro Cultural de Almada, o melhor que conseguia fazer eram cartazes. Não muitos, mesmo assim. Entre 1981 e 1986, não produzi grande coisa que se visse - exceptuando, talvez, o cartaz da Festa da Amizade de 1985, o do Carnaval de Almada de 1986 e um ou outro sobre cursos que o CCA organizava.

A partir de 1986, já não me lembro como nem porquê (mas suponho que por estar mais em contacto com pessoas que faziam desenho desenho mesmo, e não apenas "trabalhos gráficos") começo a aprender, também, a desenhar. E invento o pseudónimo Sturrefsit Adjukaatrix, que tenho usado desde então.

Este desenho é dessa primeira fornada. Terá uma história, como todos os desenhos. Neste caso, e a esta distância, parece-me que é uma tentativa (tentativa inconsciente) de "retratar" uma época em que Portugal vislumbrava no horizonte um "crescimento" capitalista e a miragem da "modernização" (1986 foi o ano da adesão à CEE). Mas a minha realidade era, ainda, a de um país "suburbano", que olhava o "progresso" de longe e, enquanto sonhava, tinha que fazer pela vida e desenrascar-se com o que tinha à mão. Um país de grandes desigualdades económicas e sociais, ainda com indústria, sustentada pela tal população suburbana, da qual faziam parte muitos imigrantes das ex-colónias.

Julgo que tentei meter isso tudo num desenho...

Mais tarde, a Câmara Municipal de Almada decide incluir no seu boletim municipal um suplemento de 4 páginas sobre políticas para "a juventude" (expressão que começara a ficar muito popular no discurso político desde 1985, Ano Internacional da Juventude) e abre um espaço para colaborações de jovens autores. Mas, por ser a primeira edição, não tinham ainda muito material para incluir e convidam-me para enviar colaboração. Envio-lhes, então, alguns desenhos e meia dúzia de poemas.

A primeira edição do suplemento de juventude do Boletim Almada Autarquias-Povo sai, então, em Março de 1990 (edição n.º 74 do boletim), e inclui dois desenhos meus. (Outra edição, em Dezembro desse ano, há-de incluir mais um desenho e também um poema - e foram esses, se não me engano, os únicos trabalhos que publiquei, até hoje, em qualquer edição da Câmara Municipal de Almada.)

Entretanto, em 1996, crio o fanzine de poesia (poezine) Debaixo do Bulcão, que chegou agora à sua edição 41 (encontram os poemas dessa edição clicando aqui). Para esta edição faltava-me uma imagem de capa. Lembrei-me, então, do velho desenho. E pronto, aí está ele, de volta.

E qual é o interesse disto tudo? Pois, se calhar não interessa nada. Mas, como já não actualizava este blogue há muito tempo... ;)

sábado, fevereiro 23, 2013

Almada, 1999

Em 1999 a câmara Municipal de Almada (CMA) lutava contra um plano de urbanização proposto pelo Grupo Mello para o terreno da Margueira, ocupado então (e ainda hoje) pelos já desactivados estaleiros navais da Lisnave.

O terreno tinha sido retirado à tutela do município em 1996 pelo recém-eleito governo PS (liderado por António Guterres) - na sequência de um processo rocambolesco relacionado com o Plano Director Municipal (PDM) de Almada. O governo anterior (PSD / Cavaco Silva) tinha recusado aprovar o documento; o novo governo aprovou-o, mas passando para a Administração Central três parcelas do território: o Plano Integrado de Almada, o Alfeite e a Margueira (Lisnave).

No terreno ocupado pelo estaleiro de reparação naval o Grupo Mello (principal accionista da Lisnave) queria construir uma urbanização para 30 mil habitantes. A CMA contestava, alegando que aquele território estava destinado a usos industriais e que pretendia instalar ali empresas que ajudassem a diversificar a base económica do concelho após a desactivação da Lisnave (que, desde a dévada de 1970 e até à data, tinha sido o maior empregador de mão-de-obra, no concelho e na região).

A divergência entre os projectos da Câmara e do Grupo Mello foi subindo de tom até que, em  Abril de 1999, a presidente da edilidade, Maria Emília de Sousa, sugeriu, em conferência de imprensa, que a população de Almada tomasse posição sobre o caso. Mas sem especificar que tipo de acções gostaria de ver desenvolvidas.

Interessado (como compete a um jornalista) agarrei no assunto, fiz as perguntas que deviam ser feitas, e desenvolvi este trabalho.

Do qual me lembrei agora, a propósito das intenções anunciadas pelo actual governo sobre a deslocalização do terminal de contentores do Porto de Lisboa para a Trafaria, no concelho de Almada.

A Margueira não seria uma hipótese melhor a considerar?

Eu sei: há um projecto da CMA apara urbanização daquele local, com construção em altura, dentro de água e em cima de uma falha sísmica. Mas é ainda projecto. E a CMA já recuou (infelizmente, penso eu) em projectos mais estruturantes, como no caso do Plano de Mobilidade.

E aquele terreno não era, supostamente, para fins industriais? Para diversificar a base económica do concelho? Um terminal de contentores, se for bem aproveitado, não pode ser uma boa aposta nesse sentido?

sexta-feira, janeiro 25, 2013

Explosão no 'Picapau Amarelo' (1994)



Morei durante muitos anos no bairro amarelo do Monte de Caparica (sim, esse, o popularmente chamado "Picapau Amarelo").

Em 1994 trabalhava eu como jornalista na Rádio Voz de Almada. E suponho que no dia 27 de Janeiro desse ano (uma quinta-feira) estaria a fazer o turno da tarde. Porque aí a meio da manhã (mais precisamente às 11h48, segundo relatam as fontes da época) ainda estava em casa, e à janela do 5º andar onde morava, na Rua do Moinho. A ver como estava o tempo antes de sair de casa, se ia chover, se precisava de me agasalhar muito e essas coisas... bem, ou tinha acabado de acordar, já não me lembro.

E então, bum! (sim, foi um bum! sem chama, relativamente pequeno e abafado, e não um BUM! ao estilo Hollywood - lamento desapontar-vos) ouço um estrondo ao longe e, logo a seguir, ao fundo da rua do lado esquerdo, umas coisas atiradas pelos ares. Coisas, tipo bocados da parede de um prédio, mobiliário e outros objectos que, normalmente, não sabem voar.

Ora eu era jornalista (já vos disse?) e, então, fiz o que qualquer jornalista teria feito: imediatamente agarro no telefone e ligo aos meus colegas da rádio a alertar que tinha acontecido qualquer coisa. Atende-me a colega Gertrudes Guerreiro e eu, para não ser demasiado alarmista, digo qualquer coisa tipo "olha, houve agora um rebentamento aqui no meu bairro, não sei ainda o que foi, mas vou lá abaixo ver o que se passa e já volto a ligar".

Ela primeiro riu-se, não sei se pela palavra "rebentamento" que usei em vez de "explosão" (que daria ao assunto um ar mais sério e grave, sem dúvida) ou se por não ser hábito os jornalistas telefonarem para os departamentos de informação a dar conta de assuntos de interesse informativo que tivessem testemunhado (e eu ainda trabalhava naquela rádio há menos de um mês - a bem dizer, eles ainda não me conheciam... ainda tinha feito poucos RMs...). Mas ficou logo alerta e interessada pelo caso, como compete a uma jornalista.

Então desço, vou ao café do outro lado da rua, e vejo já toda a gente assustada, dizendo que foi uma grande explosão lá para cima. Uma explosão de gás, pensava-se. E parece que foi feio, mesmo.

Pronto, confirmava-se. Volto para casa, ligo novamente para a rádio, confirmo que houve mesmo uma explosão (agora já me sentia à vontade para usar essa palavra). Ofereço-me para ir ao local fazer reportagem e peço que me enviem um carro de reportagem devidamente equipado (com microfone e equipamento de transmissão).

Não tenho dúvida nenhuma de que terei sido o primeiro jornalista a dar o alerta (pois se o fiz em tempo real e se não havia, que eu saiba, outros jornalistas por ali) e suponho que a Rádio Voz de Almada terá sido o primeiro órgão de comunicação social a ter conhecimento do ocorrido.

Mas foi o último a reportar! Até o Sul Expresso chegou antes!

Estava eu no local da guerra, perdão, da explosão, à espera que viesse o carro de reportagem, e vejo chegar, em caravana e numa correria, carros das televisões, rádios e principais jornais nacionais. Da Rádio Voz de Almada, népia. Só eu, mas sem nada que me identificasse. E porquê? Bem, parece que, lá na rádio, era muito complicado falar com a pessoa que poderia dar a autorização para que o carro saísse...

Enquanto não chegava o carro, desenrasquei-me com o que podia. Tento falar com as pessoas, gravo alguns depoimentos, peço para usar um telefone de uma das instituições de apoio social que existiam naquela rua, e vou enviando para a rádio a informação que consigo apurar. Era assim que se fazia quando ainda não tinhamos telemóveis e internet.

No meio da confusão e da aflição das pessoas que, de um momento para o outro, ficaram sem casa, às tantas começa a correr o rumor de que havia "um morto confirmado". E eu transmito-a em directo e sem a confirmar. Felizmente ninguém morreu e, no noticiário seguinte, lá tive que corrigir: "felimente não se confirma" o "morto confirmado". Asneira que me serviu de lição e que tentei nunca mais repetir. Nunca se dá uma informação como certa sem a confirmar primeiro!

Já agora, o que terá acontecido, segundo uma reportagem (não assinada e meio folclórica, para dizer a verdade) publicada no Sul Expresso no dia 3 de Fevereiro de 1994: "Na contagem das vítimas faltava uma criança, felizmente estava na escola e não sob os escombros". De acordo com o jornal, registaram-se "cinco feridos e vinte e uma famílias interditadas dos seus lares". Quanto às causas da explosão, não eram ainda conhecidas, mas falava-se de "suspeitas sobre uma possível fuga de gás butano, ou acumulação de biogás na fossa que canaliza os dejectos para o sistema de saneamento".
Para a maior parte dos órgãos de comunicação social aquilo foi um estrondo que nasceu e morreu ali. Nesse caso sim, podemos falar de um morto confirmado: o interesse pela sorte das pessoas que ficaram sem casa.

Mas a Rádio Voz de Almada era um órgão de comunicação local e, como tal, preocupava-se em ter assuntos locais nos seus conteúdos informativos. Portanto, em vez de deixarmos caír o assunto, tratámos de o acompanhar nos dias que se seguiram. As pessoas foram realojadas temporariamente em condições muito precárias, nos "fundos vazados" dos outros edifícios do bairro, enquanto esperavam ser enviadas para urbanizações do Estado (naquele tempo, sob tutela do IGAPHE - Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado).

O processo foi longo e chegou a dar origem a uma polémica quando o então Bispo de Setúbal, D. Manuel Martins (depois Bispo Emérito, porque um bispo nunca deixa de o ser), foi ao local, ficou impressionado com as condições em que aquelas pessoas estavam a viver e acusou forte e feio o IGAPHE de ser um "patrão sem rosto", insensível ao destino dos seus inquilinos. Viviamos então num tempo em que, apesar de tudo, muitos jornalistas ainda não tinham abdicado do seu dever de investigar para informar. E falámos com todos os que pudessem ajudar a entender (e a resolver) o problema - moradores, bispo, instituições de apoio social no terreno, responsáveis do IGAPHE...

Ainda tenho gravações de algumas dessas reportagens. Estou aqui a pensar com os meus botões que um dia destes edito o que tecnicamente ainda se aproveita e publico-as...

Notas de rodapé: as fotografias que acompanham este artigo são do jornal Sul Expresso, edição citada, que não menciona o respectivo autor; RM é abreviatura de registo magnético, ou seja, as gravações (registadas então em fita magnética) que os jornalistas faziam para passar no decorrer dos noticiários - acontece que, nos departamentos de informação em que trabalhei, tinha a fama, e o proveito, de passar muitos, demasiados, RMs.

domingo, janeiro 20, 2013

Essa treta dos "skills"

Skill: dom, arte, destreza, rapidez, habilidade (dos dicionários)


Antes do 25 de Abril, quando andava na escola primária (que era como se chamava então o ensino básico), fazia competições de leitura com um colega.

Já nem me lembro como a brincadeira começou. A professora chamava-o a ler um texto em voz alta para toda a turma ouvir, e ele lia-o muito depressa, pensando que assim demonstrava que já sabia ler muito bem. Ora, eu, que também pensava que já sabia ler muito bem, não me ficava - e sempre que a professora me chamava a ler um texto, lia-o ainda mais depressa do que ele. Claro que, quando o meu colega era novamente chamado a ler um texto, lia-o ainda mais depressa que eu. Depois, chegada a minha vez, eu respondia, lendo ainda mais depressa que ele. E assim sucessivamente. Até que, às tantas, a única coisa que interessava era a velocidade com que debitávamos sílabas quase sem respirar entre elas.

Tinhamos desenvolvido uma extraordinária competência para ler depressa. Uma habilidade. Um skill. (Palavra que não se usava naquele tempo - mas usar-se-ia hoje, certamente.)

Farta desse circo, a nossa professora disse-nos um belo dia, e muito diplomaticamente, que "ler bem não é só ler depressa: o mais importante é entendermos aquilo que se lê".

Confesso que, ao ouvir aquilo, não aceitei muito bem. Então, anda uma criança a esforçar-se para depois levar com isto? Não aceitei muito bem mas - como naquele tempo os professores tinham ainda alguma autoridade, as crianças alguma educação, e ninguém ficava traumatizado por tão pouco - não fiz cenas nem me fui queixar à mãmã ou ao papá. Pensei durante um bocadinho (pouco, como convém nessas idades) e rapidamente esqueci o reparo.

Depois, mudei de escola. Estava em São Pedro do Estoril e vim morar para um subúrbio de Almada, ainda em 1973. E aqui, como é natural, o ambiente era outro, intelectualmente muito mais pobre. E habilidades, competências, destrezas (numa palavra: skills) eram outros, também.

A chatice é que ninguém me avisou, e eu não podia adivinhar. Assim, quando fui chamado pela primeira vez naquela escola a ler um texto em voz alta, fiz aquilo para que estava treinado: debitei sílabas, rapidamente e em força.

Quando acabei a performance, ao olhar em volta, vi uma coisa extraordinária, um caso nunca visto. Professora e turma em silêncio, de olhos esbugalhados e queixo praticamente no chão, olhando para mim como se estivessem perante um extraterrestre, o último dos moicanos, o fim do mundo em cuecas ou... (inserir aqui metáfora ao gosto do freguês).

E eu mais surpreendido que eles. Então, mas não era normal, ler depressa?

Confesso que esses 15 segundos de glória me souberam muito bem, e deram-me uma ilusão de importância, grandeza, genialidade e essas coisas.

Grande erro, rapaz. Grande erro!

É que, se na escola de onde vinha olhavam para mim como um puto cheio de talento mas a precisar de aprender mais do que simples habilidades de circo - na escola para onde viera passei a ser olhado como o tipo "inteligente". E não, isso não era necessariamente um elogio.

Por uma questão de decência (e para frustrar as vossas expectativas) não vou contar aqui os dissabores que essa fama de "inteligente" me trouxe na escola. Basta, por agora, ficarem a saber que, no bairro de barracas de tijolo em que então vivia e que era habitado por uma classe operária (Lisnave e Setenave, maioritariamente) que, com o 25 de Abril, em breve ficaria em alvoroço, a minha fama de "inteligente" propagou-se como uma nódoa.

Assim quando se dão os acontecimentos revolucionários, no período 1974/1975, eu começo a interessar-me por política, começo a ir a comícios e manifestações, começo a achar que entendo os assuntos e que tenho opiniões, pelo que, sempre que digo qualquer coisa sobre qualquer coisa, lá vem a frase feita "ele é muito inteligente".

Não o diziam com maldade. Nem com ironia. Era mais com um misto de admiração, alguma inveja e uma certa dose de pena. Sim, pena: porque ser "inteligente" era, naquele contexto, não ser "normal".

Naquele contexto, o que interessava eram as competências que faziam das pessoas bons operários. A sua destreza, a sua habilidade, os seus "skills". E os meus "skills", naquele contexto, não serviam para nada. Eram "inteligência".

Claro que, com o decorrer do acelerado processo histórico que então se vivia, com a consciencialização política daquela classe operária, a inteligência (a que servia para mudar o mundo, não aquela que viam em mim) passou a ser mais valorizada. Infelizmente, isso durou pouco tempo. Mas adiante, que se vamos falar sobre isso não saimos daqui hoje.

Ora, toda esta história dos "skills" e da inteligência, acabou por ser útil anos mais tarde. Em 1981, depois de largar o ensino secundário porque achava que não aprendia ali nada que me interessasse, procurei instrução no Centro Cultural de Almada. E encontrei-a.

Aprendizagem ao mesmo tempo técnica, prática, teórica e integrada, abrangendo várias áreas do conhecimento. Aprendizagem que me habilitou a exercer actividades tão díspares como elaborar um cartaz, imprimi-lo, fazer a cobertura fotográfica ou em vídeo de um acontecimento, projectar para uma audiência filmes ou a reportagem que fizera em vídeo, sujar as mãos na serigrafia, organizar um evento, montar tubos, painéis de madeira e toldos para construir o espaço onde esse evento iria decorrer, massacrar furiosamente as teclas de um piano para fazer qualquer coisa parecida com música e depois ajudar a carregar esse piano escada acima para a sala onde, nessa noite, o maestro Victorino d'Almeida iria massacrar furiosamente as teclas desse mesmo piano para fazer música. Etc.

(Foi nesse tempo que defini dois objectivos, não sei já se ambiciosos ou modestos, para a minha vida: conhecer-me a mim próprio e alcançar o que então chamava uma visão global do mundo.)

"Skills"? Inteligência? Mas o que é que isso interessava? Interessava, sim, que estava a adquirir conhecimento e competências, a trabalhar e a divertir-me, assim, sem mais nem menos, experimentando muito sem me especializar em nada. E estava - pequeno pormenor... - a aprender a pensar.

Portanto, quando chega o momento de optar por uma profissão, vi-me com experiência de vida e competências técnicas para escolher entre várias opções possíveis, e com maturidade e esclarecimento suficientes para o fazer sem me arrepender mais tarde. (Obviamente, a conjuntura económica também favorecia essa possibilidade de escolha: depois de anos muito difíceis, estávamos então naquele período de crescimento económico, na transição da década de 1980 para 1990 - crescimento nunca igualado até hoje.)

Escolhi fazer rádio. Na rádio meteram-me a fazer jornalismo.

Aí, toda aquela destreza/rapidez/habilidade das competições de leitura da escola primária voltou, naturalmente e mecanicamente. Saber falar bem e depressa é (ou era) uma condição sine qua non para ser um bom locutor de rádio. Mas, para ser um bom jornalista, é preciso, também, não apenas saber ler bem o texto, mas saber entendê-lo bem.

Ter rapidez de raciocínio, sim, mas também ter clareza de raciocínio. E, acima de tudo isso, não apenas entender os assuntos (muito diversificados) com os quais trabalhamos, mas entender também como se relacionam, e porque são assim e se relacionam assim e não de outra forma qualquer. Chama-se a isso pensamento crítico. Eu chamo-lhe, também, inteligência. E sim, nesse tempo, habilidade e inteligência foram, indissociadamente, vantagem competitiva no mercado profissional.

Tinha razão, a minha professora da primária.

A inteligência não é um amontoado de "skills". No mínimo é a relação dinâmica entre todos eles. Talvez seja, ainda mais, um processo holístico, em que o resultado final é superior à soma das partes.

Não é, de certeza, uma exibição de habilidades circenses.

E quem ensina para desenvolver "skills" esquecendo-se de incentivar o pensamento crítico (e a inteligência emocional, de que não falei, mas que não é menos importante), estará, quando muito e na melhor das hipóteses, a formar bons técnicos, mas de inteligência limitada às funções que é suposto desempenharem. É a minha modestíssima opinião...

Chamam a isso inteligência? Pronto, chamem-lhe o que quiserem. Eu chamo-lhe (porque não?) uma máquina de encher chouriços. Informacionais, talvez. Mas chouriços, na mesma.

sexta-feira, janeiro 11, 2013

O espertinho do costume e a autoridade que não vê

O veiculo Kia de cor cinzenta estacionado em cima do passeio é um dos clientes habituais nesta rua. Mesmo depois de toda a gente aqui já ter entendido que não há necessidade nenhuma de meter o carro em cima do passeio (até porque, ao fazê-lo, estão não só a dificultar a circulação de peões, mas a contribuir para o avançado estado de degradação da calçada), o proprietário deste carro deve achar-se com mais direitos que os outros, ou com algum tipo de impunidade. Porque continua, sistematicamente, a fazer o mesmo.

Um destes dias, aconteceu a situação documentada nas fotos. Um carro da Polícia ficou, durate algum tempo, estacionado atrás do Kia cinzento. Depois foi-se embora sem fazer rigorosamente nada quanto à infracção que tinha testemunhado mesmo à sua frente.

Assim, com estes exemplos de permissividade, não admira que o proprietário daquela viatura continue a fazer pouco dos que são respeitadores e cumpridores. Não admira que continue a sentir-se impune.


Estacionar em cima do passeio é ilegal, de acordo com o artigo 49, alínea f), do Código da Estrada.
http://www.ansr.pt/default.aspx?tabid=256

Ah, e então o que é feito da Ecalma, perguntam vocês? Pois, boa pergunta...