quinta-feira, agosto 26, 2021

OMS, sobre vacinação contra a Covid-19 e viagens (20 agosto 2021)

 Mariângela Simão, diretora-geral assistente para Acesso a Medicamentos, Vacinas e Produtos Farmacêuticos da OMS
 
Transcrição de uma entrevista publicada no site ONU News em Português

A diretora-geral assistente da Organização Mundial da Saúde para Medicamentos, Vacinação e Fármacos, destaca que a agência é contra a vacina ser pré-requisitos para viagens. De Genebra, a médica brasileira Mariângela Simão destaca que os países não devem criar ainda mais barreiras numa fase em que o acesso à vacinação contra a Covid-19 está muito desigual. Ela também falou com a ONU News sobre a imunização de adolescentes e destaca que ainda é preciso esperar para vacinar as crianças. 


 

ONU News (ON): A ONU News entrevista a diretora-geral assistente da Organização Mundial da Saúde para Medicamentos, Vacinação, dra. Mariângela Simão, falando conosco diretamente de Genebra. Eu queria fazer a primeira pergunta destacando um ponto interessante que a senhora mencionou em uma conferência de imprensa da OMS. A senhora disse que a terceira dose da vacina contra a Covid está causando um dilema ético. Países em desenvolvimento ou de baixa renda estão com a vacinação atrasada, mas nações desenvolvidas já consideram aplicar uma terceira dose. A senhora pode comentar este ponto?

Mariângela Simão (MS): Pergunta super interessante, porque está na mídia todos os dias. Não existem ainda estudos científicos comprovando que uma terceira dose vai ser necessária. E o segundo ponto é o que você mencionou, que eu havia falado, sobre a questão ética. Você tem um quantitativo extremamente grande de pessoas em países em desenvolvimento, em especial países de baixa renda, que tem maior risco de adoecer e de morrer por conta do SARS-Coronavírus, que não têm acesso à vacina. Ao mesmo tempo, você já está falando em países de alta renda em fornecer uma terceira dose que ainda a gente não tem a certeza de que será necessária. Uma boa parte dos países que estão discutindo a terceira dose, estão priorizando algumas populações. Saiu nos Estados Unidos, e também na semana passada na Alemanha, que estão priorizando pessoas que têm imunosupressão, que essas pessoas precisariam de uma terceira dose. Pode ser que ela seja necessária, a gente não sabe, inclusive para grupos bem específicos. Mas como medida de saúde pública geral, ainda não têm a evidência necessária para que isso ocorra.

ON: Aqui na Europa e alguns países da América do Norte, a vacinação já está num ritmo bastante acelerado, mas por exemplo, a África tem menos de 2% da população vacinada. É importante falarmos dessa divisão e não esquecermos de países africanos que precisam receber mais doses e avançar com esse processo.

MS: Esse é um ponto super importante. Nós temos 74 países que têm menos de 10% de cobertura e há países com 60%, 70% de cobertura, falando de duas doses, da cobertura completa, já que só uma das vacinas precisa de apenas uma dose, que é a vacina Janssen. A gente tem que levar isso em consideração. A grande predominância de países com muito baixa cobertura são países no continente africano, infelizmente.

ON: Vamos falar agora sobre a vacinação para os mais jovens, no caso os adolescentes. Vou citar como exemplo Portugal, que acaba de dar a luz verde para que adolescentes a partir dos 12 anos possam receber a vacina contra a Covid-19. Muitos pais ainda têm dúvidas, receio, o que a Organização Mundial da Saúde tem a dizer sobre a vacinação de adolescentes e sobre estudos para vacinação de crianças no futuro?

MS: Muita gente pergunta: por que não vacina criança? Qualquer estudo clínico para colocar um medicamento ou uma vacina no mercado não são feitos com crianças, eles são primeiro feitos com adultos e mais tarde, com crianças, adolescentes e mulheres grávidas, uma vez que tenha sido comprovado que é seguro em adultos. Às vezes demora anos, depois que um medicamento foi lançado para adultos para chegar os dados sobre crianças. Tem que levar com cuidado, principalmente por questão de segurança.
A posição da OMS em relação à vacinação de adolescentes: claro que crianças e adolescentes têm um menor risco de complicações severas pela Covid-19. Mas a gente tem duas vacinas que já têm estudos em relação à segurança em adolescentes, a vacina da Pfizer-BioNtech e a vacina da Moderna, essas duas já tem estudos. A OMS tem uma reflexão, uma recomendação de que se deve ter um cuidado com os adolescentes que têm condições associadas, doenças associadas e que por conta dessas doenças, possam ter um maior risco de desenvolver uma doença severa, um Covid severo. Então esses adolescentes que têm pré-disposição deveriam ser incluídos no estágio 2 da vacinação naqueles países onde a transmissão é alta ou onde você vê que a transmissão comunitária está aumentando. Não há indicação ainda para crianças. Eu sou pediatra e a relação de benefício e de custo em relação a aplicar vacinas em crianças ainda não está comprovada. Então é preciso ter mais dados e mais estudos em relação à segurança dessas vacinas na faixa etária menor. Vamos ter que esperar um pouco.

ON: Depois de um ano e meio de pandemia, todo mundo ficou confinado durante vários meses, há pessoas que tomam a vacina por um outro motivo, porque querem viajar, querem sair de onde estão.  Quais são as diretrizes da Organização Mundial da Saúde neste sentido? Cito como exemplo os países europeus, que aprovaram as vacinas da Pfizer, Moderna, Janssen. Alguns países da Europa já estipularam que não irão receber turistas que não tomaram estas vacinas. Será que isto poderá criar ainda mais divisão?

MS: Em primeiro lugar, a OMS é absolutamente contrária à vacinação ser pré-requisito para viagens. Porque dada a essa enorme inequidade no acesso à vacina, você não está num ponto em que todo mundo tem acesso, todos os países têm acesso. Então a OMS tem reforçado, encorajado os países a não criarem mais barreiras do que necessário, porque tem outras formas. Antes das vacinas, você tinha países, por exemplo, que exigiam um teste rápido, um PCR para poder entrar no país, fazer outras medidas como quarentena e tudo o mais. Eu acho que este é um primeiro fator de que exigir um certificado de vacina num mundo tão desigual, com acesso tão desigual, só exacerba as inequidades e as desigualdades. Este é um ponto. O outro ponto é que o Parlamento Europeu aprovou uma regulamentação para facilitar o livre trânsito entre os países da União Europeia. A situação do passaporte europeu com as vacinas que são autorizadas pela Agência Europeia de Medicamentos. E aí teve um entendimento de muitos países de que só seriam as autorizadas pela Agência Europeia, mas isso é na verdade para o trânsito entre os países da Europa. O próprio Parlamento Europeu fez uma recomendação para que os países considerassem, para autorização de entrada de pessoas de outros países que não da União Europeia, que considerassem a autorização para vacinas que estão autorizadas, emergencialmente listadas pela OMS. Vários países europeus fizeram isso. Para entrada no Espaço Schengen, cada país do espaço é livre para decidir o que aceita de fora da União Europeia e muitos deles aceitaram as vacinas listadas pela OMS. No caso do Brasil, inclui a Coronavac, que é a vacina da empresa Sinovac.
 

domingo, janeiro 10, 2021

Mobilidade e medo em tempos de pandemia

 


Texto de Inês Lourinho, infografia Nuno Barbosa e Nuno Semedo

(artigo publicado na revista PRO TESTE, edição Janeiro 2021)


Ninguém o vê, mas todos o temem. O coronavírus tem condicionado as opções de mobilidade e o acesso ao espaço público. Quatro em cinco inquiridos receiam transportes públicos e eventos em recintos fechados. Quatro em dez têm medo inclusive de um simples passeio no jardim



O Verdadeiro dono disto tudo

O medo é um motor poderoso, que nos paralisa, nos leva à proteção de um esconderijo. Porque o sentimos? Por um primitivo impulso de sobrevivência, por um forte desejo de vida, ainda que inconsciente. A origem dos medos é complexa, não tem resposta de sim ou não, de preto ou branco. Mas muitos são resultados de um processo de aprendizagem.

Os últimos meses têm-nos parecido longos, como se desde aquele março, que, como todos os marços, prometia uma renovadora primavera, e ao invés nos trouxe a doença, tivéssemos vivido eternidades. Estes meses ensinaram-nos uma ampla paleta de cores do medo. Os boletins diários sobre a pandemia, as omnipresentes manchetes dos média, a desinformação na Internet propagada por incontáveis tribos de profetas pela verdade, as diretrizes das autoridades, ora para confinar, ora para desconfinar, e, em cima de tudo, a doença, o desemprego e a falta do contacto social têm construído um contexto de medo a que é difícil escapar.

Os resultados do nosso inquérito à mobilidade em tempos de pandemia não oferecem, por isso, grande surpresa. E são transversais aos países em que foi conduzido, sob os auspícios da Organização Europeia de Consumidores e do International Consumer Research and Testing: Alemanha, Áustria, Bélgica, Eslovénia, Espanha, Holanda, Itália, Lituânia, República Checa e, claro, Portugal. Os 11.273 inquiridos, dos quais 1.014 portugueses, têm uma forte perceção do risco de infeção nos transportes públicos, seja em viagens de pequena ou de longa distância. Ainda assim, portugueses e italianos são os mais receosos: 80% temem usá-los. O inquérito foi enviado em finais de outubro e abrangeu a população dos 18 aos 74 anos. As respostas recolhidas refletem as opiniões e as experiências dos inquiridos.


Teletrabalho, uma ideia com futuro?

A pandemia trouxe muitas alterações ao modo de funcionamento da sociedade. Para evitar aglomerações, sobretudo nos transportes públicos, o teletrabalho impôs-se sem pedir licença. Antes do advento da covid-19, cerca de três em quatro empresas ou empregadores não permitiam prestação dos deveres profissionais à distância. Com o confinamento, apenas uma em quatro não considerou tal possibilidade. Mas, se antes de o coronavírus nos ter sitiado em casa, as entidades patronais dos inquiridos portugueses pareciam menos adeptas do teletrabalho do que as dos outros dez países do estudo, na quarentena, tiveram das adesões mais elevadas.

Quando a Europa começou a ensaiar um desconfinamento, o teletrabalho sofreu uma quebra discreta, que se intensificou em outubro, altura em que recolhemos os dados do inquérito. Tudo sugere, porém, que, no pós-pandemia, este formato não venha a ser o Santo Graal que muitos vaticinavam. Segundo os inquiridos portugueses, as suas empresas estão dispostas estão dispostas a continuar com o teletrabalho, mas o incremento é algo modesto, nem chegando a 10 por cento. E, quando desagregamos os resultados por nível educacional, indicador de um emprego mais ou menos qualificado, vemos que as perspetivas de a empresa permitir o teletrabalho quando a pandemia se extinguir são exatamente iguais: 38% dizem que o cenário será possível.

Aos que têm a possibilidade de teletrabalho no longo prazo, abrem-se janelas de oportunidade no que se refere à organização das suas vidas. Uma percentagem apreciável gostaria de mudar de ares e habitar noutra zona do País, fosse a título permanente (13%), fosse de forma temporária ou alternada (26 por cento). São sobretudo os que vivem na região de Lisboa e Vale do Tejo a contemplar este plano, que pode aliviar a pressão sobre os grandes centros urbanos, tanto em termos de transportes, quanto no plano da habitação. E, ao analisarmos por idades, os mais novos, na faixa dos 18 aos 34 anos, e os mais seniores, dos 50 aos 74 anos, são os mais suscetíveis à ideia. Mas casos há - 22% dos inquiridos - em que a natureza do trabalho que desempenham não lhes permite pensar em cenários idílicos.


Medo omnipresente

Não podemos viver com o outro, nem sem o outro. Parece ser o lema dos nossos dias. Se temos saudades dos contactos presenciais, também os tememos, e muito. O medo da infeção passou a condicionar o tipo de meios de transporte usados por 60% dos inquiridos, assim como a periodicidade das deslocações de 82% e os lugares frequentados por 87 por cento.

Todas as formas de mobilidade diminuíram em uso, exceto os transportes próprios, como mota, bicicleta, trotinete e carro. Nota-se uma quebra de 10% nas caminhadas, entre outubro e o período anterior à pandemia. A desaceleração no uso dos transportes públicos por quem o fazia cm frequência semanal é idêntica, na ordem dos 11%, e faz-se sentir sobretudo entre os jovens da região de Lisboa e Vale do Tejo até aos 35 anos. São especialmente os que reportam um nível de estudos médio ou elevado e que vivem em zonas suburbanas ou rurais quem demonstra um temor mais acentuado. Em contrapartida, 19% dos inquiridos que usavam os transportes públicos semanalmente antes da pandemia afirmam que intensificaram o recurso ao carro próprio. A seguir a esta opção, destacam-se os jovens até aos 30 anos e com nível educacional mais elevado.


Mas, se os transportes públicos correspondem a um contexto central quanto à perceção de risco - e não falamos de perigo efetivo, que não medimos, mas daquilo que os cidadãos sentem -, outros espaços são associados a uma elevada probabilidade de infeção. Eventos em recintos fechados são receados por 79% dos participantes no estudo, enquanto bares e ginásios inspiram temos a 73 por cento. Já eventos ao ar livre, restaurantes, centros comerciais e hostels e guest houses são receados por cerca de metade. Nem mesmo os jardins públicos, onde seria possível respirar fundo face às preocupações com a covid-19, escapam aos receios de quatro em dez inquiridos.

E depois da pandemia? O inquérito sugere que os receios podem levar tempo a esvair-se. Uma parte dos inquiridos revela que irá deixar de usar transportes públicos, frequentar restaurantes ou fazer viagens turísticas, em Portugal ou no estrangeiro. A Ver vamos. A história ensina-nos que o medo face aos donos disto tudo, um dia, também morre.


fonte:

https://www.deco.proteste.pt/