quando esta criancinha começou a articular as primeiras sílabas
o papá todo babado
achou muito engraçado
ensinar esta criancinha a dizer uma palavra muito simples
e muito gira:
ca-ra-lho.
vá lá, repete com o papá:
ca
(ca)
ra
(ra)
lho
(lho).
muito bem! agora tudo junto vai:
ca-ra-lho!
(ca-ra-lho!)
sim senhor que grande homem
que grande homem vamos nós ter aqui!
diz o papá
todo babado.
desde esse dia o papá todo babado
continuou a encorajar o filho a dizer caralho
até o filho já não precisar de ajuda
para dizer caralho
e outras palavras sobre outras partes e funções do corpo
que entretanto foi aprendendo
(as palavras, não o corpo nem as funções
pois isso era tabú para o papá babado
e se era tabú para o papá babado
era tabú para toda a gente lá em casa).
acontece que um belo dia
(porque estas coisas, já se sabe, acontecem sempre em belos dias)
havia visitas lá em casa
e esta criancinha
toda contentinha
quis mostrar aos convidados as palavras que já sabia
tais como
papá
mamã
e
caralho.
é claro que levou logo um par de tabefes
muito bem assentes na cara
que o papá não está cá para aturar
faltas de respeito em frente às visitas.
portanto (aprendeu a criancinha)
podemos dizer caralho sempre que quisermos
a não ser que haja visitas em casa,
certo?
errado.
o papá ficou tão lixado
que desde esse dia em diante começou a ter mais
cuidado
(não o "cuidado" que era o que chamava ao coito interrompido
sempre que ía às putas
mas outra espécie de cuidado
muito mais moralizado)
e passou então a aplicar regras lá em casa:
as regras do papá.
(nessa altura, um papá já não tão babado
a não ser quando chegava a casa com uma bebedeira de cair para o lado.)
as regras do papá eram:
se o papá estava bem disposto
brincava com o menino
apaparicava o menino
deixava o menino fazer tudo
e mais alguma coisa porque
deixa lá o menino (não vês que é pequenino?)
ai meu rico menino
que é tão engraçadinho
diz lá aquilo que o papá quer ouvir:
caralhinho!
muito bem! lindo menino!
mas se o papá chegava a casa mal disposto
a coisa dava para o torto
e lá estava o menino
tão engraçadinho
e tão pequenininho
a levar porrada de meia-noite
porque fez qualquer gracinha
e o papá não gostou
e o papá não gostou não por causa da gracinha
mas só mesmo porque o papá estava mal disposto.
portanto (aprendeu o menino)
é preciso ter cuidado
não com aquilo que faço
mas com a ocasião em que o faço
não vá o papá estar mal disposto
não vá o papá estar atravessado
(ensinamento que lhe foi muito útil
pela vida fora
desde que, num desenvolvimento lógico,
o generalizou desta maneira:
posso portanto fazer toda a merda de que for capaz
e que me apeteça
desde que mal não pareça
desde que o papá não apareça
desde que eu não seja apanhado).
foram coisas como estas que fizeram o menino
crescer tão trocidinho
pois de pequenino se troce o pepino
diz o povo
e diz o papá do menino.
já quanto à mãe do menino (falemos dela)
ao princípio ainda tentou fazer alguma coisa
para refrear a selvajaria
do imbecil do seu marido.
mas quê, uma mulher?
uma mulher não tem direitos.
uma mulher não pode fazer nada.
uma mulher é para ficar em casa
a coser meias
ou ir trabalhar se for mesmo preciso mas depois chegar a casa
fazer o jantar ao marido
e ficar de bico calado.
se não, está o caldo entornado:
o caldo a ferver em cima da gaja
o azeite a ferver em cima da gaja
as tareias de cinto mas isso ainda é o menos
que a gaja tem bom corpo e aguenta bem
e outras coisas que não vou referir
mas que deixaram marcas
(marcas, por exemplo, de cutelo na parede de uma casa)
até que a mulher enfim vencida
se remeteu ao seu papel
de mulher:
levar porrada
e ficar calada.
e ela resignou-se de tal forma
horrenda
e foi de tal maneira rebaixada
humilhada
e espancada
que chegou mesmo a convencer-se que isso é o normal
ou seja
que quem lhe diz que as coisas podem ser de outro modo
e devem ser de outro modo
e, mais do que dizer, dá o exemplo e faz as coisas de outro modo
é anormal
e deve ser tratado como tal:
como anormal.
ora, isto foi outro ensinamento
que se veio a revelar muito útil para o menino
que começava, por esta altura, a ficar
um lindo menino.
então
e para resumir
(até porque existe aqui um lapso de tempo
cujos acontecimentos não vivi e como tal
apenas posso presumir)
o lindo menino tornou-se um homem português normal:
um gajo, foda-se!, que é um homem a sério, caralho!
um gajo que faz o que lhe apetece
desde que não seja apanhado
e ninguém tem nada a ver com isso
até porque ele é para toda a gente um tipo simpático
que dá porrada na mulher mas já se sabe
entre marido e mulher
ninguém mete a colher
a não ser o próprio (a colher
o limão, a seringa e o resto)
e até tem um bom emprego
onde é muito respeitado
quer dizer, tinha, porque agora o que ganhava já não chega
para comprar a droga que coitadinho tem de injectar na veia
todos os dias
e então não lhe resta outra escolha
tem mesmo coitadinho que ir roubar
e assaltar
e mais uma vez dar porrada na mulher
quando a mulher não lhe dá todo o dinheiro
de que ele precisa
para continuar a injectar
o pobrezinho
do agarradinho
que está muito doentinho
coitadinho (diz o papá
e lamenta a mamã).
e é este jovem português normal
que com grande arrogância (o valente!) se vira para mim
e me diz "tu não vales um caralho".
pois.
eu não sou jovem. nem português. nem normal.
ele (que pelos vistos é essas coisas todas)
ele sim, vale um caralho.
e mais não vale
pois foi só isso que lhe ensinaram
e mais do que isso ele não quis
ou não conseguiu
ser:
é um caralho
e mais nada.
António Vitorino
(ps: para dizer a verdade
o que contei nesta memória
não é da estória sequer a metade)
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