quinta-feira, abril 26, 2007

Como isto não pode ser só brincadeira, aqui vai um excerto da "Peregrinação", de Fernão Mendes Pinto:



(leitura altamente recomendada aos candidatos a "nacionalistas", já agora)

«Nesse dia, logo pela manhã, vimos chegar um pequeno barco à ilha pelo que fomos forçados a escondermo-nos no interior do mato para não sermos descobertos. Seriam cerca de trinta homens que decidiram logo fazer aguada e lenha, lavarem a sua roupa e guisarem de comer.
Vendo António de Faria quão descuidados eles andavam e que no barco não havia nenhuma pessoa que o pudesse defender, disse-nos:
- É escusado dizer-vos, senhores e irmãos meus, que importa agora trabalhar para tomarmos esta embarcação que Nosso Senhor milagrosamente aqui nos trouxe, pois nela está a nossa salvação. Logo que eu disser três vezes "Jesus, nome de Jesus", fazei o que me virdes fazer.
Quando António de Faria fez o sinal combinado, corremos juntamente com ele e, chegados ao barco, apoderámo-nos dele sem qualquer resistência e afastámo-nos em direcção ao mar. Os chineses, surpreendidos, acudiram apressadamente à praia mas já era tarde.
Acabrunhados, recolheram ao mato onde choraram a sua má sorte, enquanto nós agradecíamos ao Senhor a sua misericórdia.

Como um menino deu mostras de grande sabedoria e coragem

Depois de bem instalados no barco, pusemo-nos a comer descansadamente o jantar que um velho preparara para os chineses. E que bem que nos soube aquele arroz de aves e toucinho picado! Para além disso, a mercadoria a bordo era valiosa: seda, cetins, damascos e três grandes boiões de almíscar, tudo avaliado em quatro mil cruzados.
Entretanto, António de Faria, vendo um menino de doze a treze anos que também ali estava, perguntou-lhe o que fazia ali.
- Este barco era do infeliz do meu pai que, numa hora perdeu o que lhe custou mais de trinta anos a ganhar.
António de Faria disse-lhe que não chorasse, prometendo que o trataria como filho seu. O moço, olhando para ele com um sorriso de escárnio, respondeu:
- Não penses que sou parvo. Se gostas assim tanto de mim, peço-te por amor do teu Deus que me deixes ir a nado até àquela triste terra onde está quem me gerou, porque esse é o meu pai verdadeiro.
Alguns dos presentes repreenderam-no pela forma como ele respondeu ao capitão. Mas o menino continuou:
- Vi-vos louvar a Deus mas sabei, senhor capitão, que roubar e matar são dois pecados sem perdão.
Espantado com a coragem e sabedoria deste moço, António de Faria perguntou-lhe se queria ser cristão.
Pondo os olhos no céu e as mãos no peito, o menino respondeu:
- Bendita seja, Senhor, a tua paciência, que tanto sofre por haver na terra gente que fale tão bem de ti e use tão pouco a tua lei. Assim procedem estes cegos e miseráveis que pensam que roubar e pregar te pode satisfazer como aos príncipes tiranos que reinam na terra.
Não querendo mais responder a qualquer pergunta foi pôr-se a um canto a chorar.
E nós continuámos peregrinando.»

Fernão Mendes Pinto
"Peregrinação"
(Narrativa adaptada por Fernando Cardoso
Areal Editores, 1999)

Mais sobre Fernão Mendes Pinto:
Na wikipédia
pt.wikipedia.org/wiki/Fern%C3%A3o_Mendes_Pinto
Em Vidas Lusófonas
www.vidaslusofonas.pt/fernao_m_pinto.htm

E a escola secundária onde eu andei, faz já muitos, muitos anos:
www.esfmp.net
(Naquele tempo a escola ainda não tinha uma página na internet.
Aliás, naquele tempo não havia internet...)

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