Em 1994 havia entre a população portuguesa um sentimento de insegurança...
Estávamos no início de uma época de prosperidade económica (recebíamos muitos fundos comunitários, havia muito dinheiro a circular) e nós, portuguesitos, entrámos na onda do novo-riquismo, fartámo-nos de comprar telemóveis, computadores e roupas de marca (iam longe os anos 80, e a promessa de frigoríficos em todos os lares portugueses...). Ainda havia por aí bandos de "skinheads" a arranjar confusões, mas já tinhamos enxotado os negros e outros pobretanas para bairros periféricos e... Ops, esses mesmo começavam a revoltar-se, e a querer, também eles, telemóveis e roupa de marca!...
A maneira mais fácil (ou a única?...) de obter essas coisas, era roubar... E se fosse roubar os "pulas", melhor ainda: vingávamos 500 anos de opressão e afirmávamos melhor as nossas raízes africanas, check it out, yo! Tá-se well?
(Se não perceberam a ironia, azar!)
Mas parece que, no meio de toda esta agitação social, os portugueses - entretidos como estavam com os seus telelés, pcs e vcrs - tinham medo, sim, mas era dos "drogados"!
Isto a fazer fé no que se afirmava no jornal
Público, em 19 de Junho de 1994 (e que, não desfazendo, foi talvez a primeira tentativa feita - nessa época - por um jornal português para recolher, de forma sistematizada, dados sobre a criminalidade ou, mais propriamente, o sentimento de insegurança).
Cito:
Em Portugal a noção de local perigoso está quase sempre associada à droga. Bairros e ruas onde se faz tráfico, ou que são simplesmente pontos de encontro de toxicodependentes, aparecem em quase metade da lista de locais que o Público seleccionou a nível nacional, através de um extenso inquérito em todo o país a um grupo de onze profissões.
Neste Grande Atlas do Portugal Perigoso - que destaca os pontos que aparecem mais vezes nas estatísticas do crime mas também o simples medo que certos locais promovem a quem a eles se desloca em trabalho - Lisboa vem à frente como a cidade mais perigosa. O que não espanta, num país apesar de tudo sereno, pequeno, em que as grandes cidades são raras.
Fora da capital há evidentemente locais perigosos, onde as probabilidades de haver assaltos, furtos a pessoas ou propriedades, e ofensas corporais são maiores. Mas dos 305 concelhos portugueses só em 34 apareceram lugares onde as profissões inquiridas pelo Público - Polícias (PJ, PSP e GNR), carteiros, médicos de serviço nocturno ao domicílio, assitentes sociais, bombeiros, funcionários dos telefones, transportes (públicos e taxistas) e serviços camarários - sentem receio.
Um receio que, apesar de tudo, segundo dizem, não os impede de entrar em praticamente nenhum lugar, mesmo os de pior nome. A excepção são os taxistas, da Grande Lisboa, que explicitam várias zonas onde pura e simplesmente não entram ou, se o fazem, é porque realizaram, com o cliente, acordos prévios que chegam a incluir garantias bancárias. É o caso do interior do Casal Ventoso, um dos bairros emblemáticos do tráfico de droga em Lisboa.
O espanto de muitos profissionais perante a pergunta do Público - "Quais são os locais mais perigosos em termos de crime na região em que trabalha?" - e a reacção de vários comandos distritais de polícia, que quase se ofenderam quando perguntámos "Têm medo de entrar em algum lugar?", revela a situação de pacatez nacional e explica, em parte, a ausência de várias capitais de distrito dos mapas destas páginas.
(...)
Em relação a Lisboa (...) "a confusão ajuda os ladrões. É quase mais fácil assaltar uma casa na Av. Alexandre Herculano (transversal da Av. Liberdade, centro de Lisboa) do que um apartamento em Carnaxide" (periferia de Lisboa), disse ao Público Francisco Pereira Calvão, cordenador para a área dos furtos e roubos da Polícia Judiciária.
Aliás, para a PJ é evidente que quem estiver às dez da noite na zona do Marquês de Pombal - quem for por exemplo passear para o Parque Eduardo VII, "e ainda há muitas pesoas que vão namorar para lá" - terá muito mais hipóteses de ser agredido ou assaltado do que às cinco da manhã em muitos dos locais de capitais ou vilas de província que, no contexto local, são olhados com muita desconfiança.
À cabeça de um Atlas do Portugal Perigoso deveriam estar indicados os locais onde há mais homicídios e violações. Mas o homicídio, por exemplo, "não escolhe lugar nem hora" que permitam apontar com o dedo os sítios onde há mais ocorrências, como diz o inspector João de Sousa, de departamento de homicídios e ofensas corporais da Polícia Judiciária. Restam-nos portanto as estatísticas nacionais: em 1993 houve 83 homicídios (33 no primeiro semestre, 50 no segundo), e entre 1 de Janeiro e 31 de Maio, 49.
(...)
Geograficamente, tornou-se óbvio que o crime de rua que implica violência, os assaltos a casa e lojas, é mais comum no litoral que no interior do país. Mas também é no litoral que estão concentrados a maior parte dos portugueses, muitos deles a habitar bairros periféricos e, portanto, mais pobres.
"O Grande Atlas do Portugal Perigoso"jornal Público, 19 de Junho de 1994Texto de Bárbara Dias e Rui Cardoso Martins, com David Pontes, Luís Filipe Sebastião e os correspondentes do Público que encontraram zonas de relevo nos respectivos concelhos e distritos: Alexandrina Baptista, Santarém; Carlos Camponez, Leiria; Carlos Dias, Beja; Francisco Fonseca, Barcelos; Graça Barbosa Ribeiro, Coimbra; Idálio Revez, Faro; Jorge Talixa, Vila Franca de Xira; José Parreira, Peniche; Luís Paulo Rodrigues, Famalicão; Manuel Teixeira, Matosinhos; Pedro Garcias, Vila Real; Raul Oliveira, Sines; Raul Tavares, Setúbal; Tolentino da Nóbrega, Funchal.
O método do Atlas
O Público fez uma pergunta - "Quais são os locais mais perigosos em termos de crime na região em que trabalha?" - a um grupo de profissões de Norte a Sul de Portugal, Madeira e Açores. Polícias (PJ, PSP e GNR), carteiros, médicos de serviço nocturno e ao domicílio, assitentes sociais, bombeiros, funcionários dos telefones, transportes (públicos e taxistas) e serviços camarários foram as profissões escolhidas por serem aquelas que mais directamente fazem deslocações, constantes, aos vários pontos das cidades e vilas portuguesas, independentemente de serem ou não receados.
O levantamento feito no terreno pelos jornalistas merecia, também ele, ser objecto de estudo.
Veja-se, por exemplo, o caso de Almada, que aparece com 15 entradas (o maior número de referências nesse "atlas"), enquanto, por exemplo, Setúbal é referenciada apenas 9 vezes. Eu não me sentia mais inseguro no jardim da Cova da Piedade (Almada) que na Avenida Luisa Todi (Setúbal)... E não sei o que são as "zonas escuras do Bairro do Pica Pau Amarelo": seriam as traseiras do prédio onde eu morava, no Bairro Amarelo? Mas, nesse caso, estávamos muito longe do Hospital Garcia de Orta... (Suponho que o jornalista que recolheu os dados se estaria a referir ao bairro do Valdeão... ou ao Bairro do Matadouro... ou ao Bairro Cor de Rosa... ou mesmo ao Pragal - pois são essas as zonas residenciais mais próximas do Hospital).
Sem mais comentários, aqui fica a "caracterização" das "zonas problemáticas" de Almada, segundo o Público, em 1994:
Almada População: 151.783Desemprego: 10,8% (dados de 1994, note-se)
Zonas escuras do Bairro do Pica Pau Amarelo
Problema: Junto às traseiras do Hospital Garcia de Orta são comuns as desavenças, talvez por seu um local de tráfico de droga.
Torcatas e Pragal
Problemas: Local de concentração de consumidores de droga. Zona de assaltos também, onde os taxistas, por exemplo, não gostam de ir.
Mata de S. António, Costa da Caparica
Problemas: Zona clandestina densamente aglomerada. A própria polícia tem medo de lá entrar. Não raras vezes, embora sem eco público, verificam-se confrontos entre "gangs" de negros e cabeças rapadas.
Jardim da Cova da Piedade
Problemas: Local de concentração de toxicodependentes.
Barrocas, Cova da Piedade
Problemas: Local de concentração de toxicodependentes. Assaltos. Os taxistas sentem-se inseguros.
Quinta do Rato e Bairro da Fundação, Laranjeiro
Problemas: idem
Quinta de Sto António e Bairro de S. João, Feijó
Problemas: idem
Bairro Fundo Fomento, Vale Figueira
Problemas: idem
Charneca e Vila Nova da Caparica
Problemas: Assaltos a carros e vivendas. Os taxistas sentem-se inseguros.
Bairro Campo da Bola, na Costa de Caparica, zonas de praia na própria vila, Marisol e zona da Fonte da Telha
Problemas: Local de concentração de toxicodependentes. Assaltos à mão armada. Os taxistas sentem-se inseguros.
S. Pedro da Trafaria, zona 2º Torrão
Problemas: Droga e assaltos. Os taxistas sentem-se inseguros.
Ruelas de acesso ao cais de embarque, Cacilhas
Problemas: Entreposto fluvial. Zona de chegada e partida de "mulheres do alterno" e "utentes" do "bas-fond".
Imediações do Asilo 28 de Maio, Porto Brandão.
Problemas: Criminalidade de todo o tipo, com predominância para o tráfico de droga.
Cova do Vapor, Trafaria
Problemas: Os taxistas receiam trabalhar naquela zona.
Bairro Amarelo, Monte da Caparica
Problemas: Local de concentração de toxicodependentes. Assaltos.