Para os visitantes que não são de cá, começo por esclarecer já o seguinte: aqui há uns dias, este pacato Portugal foi surpreendido com a divulgação nas televisões de um vídeo que já circulava na Internet, mostrando uma professora do ensino secundário (senhora de uns 60 anos) a ser injuriada por uma aluna de 15. E tudo por causa de um telemóvel – objecto cuja utilização supostamente não é permitida nas salas de aula portuguesas.
A jovenzinha, perfeitamente histérica, agarrava-se à professora berrando-lhe «dá-me o telemóvel! Dá-me o telemóvel já!».
E o resto da turma divertia-se à brava com o acontecimento, e alguns alunos (principalmente o que gravava as imagens – com um telemóvel, curiosamente – mas
não só ele) até incentivavam a que a “luta” prosseguisse – como se estivessem não numa sala de aula, mas numa arena a assistir a um espectáculo de “wrestling” (embora, aqui, nem se tratasse de um combate, uma vez que a desproporção de forças era tão evidente, que a única coisa que seria de esperar era a humilhação de alguém… neste caso, da professora –
algo que não acontece no “wrestling”, não é… hããããã?...)
Beeeem… Antes que alguns de vocês comecem a berrar-me aos ouvidos porque eu sou um moralista e “um menino” (é isso que costuma acontecer sempre que eu aqui me refiro a essa palhaçada sangrenta copiada pelos americanos a partir das lutas de gladiadores do império romano), deixem-me que vos diga que eu até entendo que o conflito seja uma coisa interessante.
Os conflitos (e a resolução dos conflitos, de forma que pode ser mais ou menos violenta, mas raramente pacífica) são, como se sabe, o alimento de quase toda a literatura e de quase toda a arte dramática que enforma a nossa civilização.
Brutalidade, selvajaria, lutas…desde os relatos míticos primordiais (o Antigo Testamento proporciona abundantes exemplos), passando pelas fundamentais Ilíada e Odisseia, por clássicos como o Hamlet, até às obras-primas do cinema contemporâneo – o conflito, e as formas de o resolver, são a matéria-prima e o fundamento dessas realizações humanas.
E porquê? Porque o conflito (ou melhor, as suas representações) não serve apenas de “catarse”, ou de alívio para as tensões que criamos nos nossos relacionamentos – o conflito (as suas representações) é educativo!
Vendo como outros (grupos, ou pessoas) resolvem (a bem ou a mal) as suas divergências, esperamos aprender alguma coisa – aprender a não cometer os mesmos erros (e isso é mais importante que apenas esperar que “aquilo não aconteça connosco”).
Isto funcionou, na construção da civilização em que vivemos, até há bem pouco tempo.
Claro que o simples espectáculo da humilhação pública do “próximo” esteve sempre presente – mas era algo anormal, como um acidente de viação.
Ora, o que se passa agora, neste tempo de retrocesso civilizacional, em que tudo se reduz ao “espectáculo” (e, de preferência, espectáculo televisionado, ou “postado” no Youtube) é que esse tipo de coisas “anormais” passou a ser algo a que nós não apenas nos habituámos, como, cada vez mais, desejamos para condimentar a nossa vidinha chata e frustrante. Não tentamos fazer coisas que nos realizem enquento indivíduos, para que a nossa vidinha deixe de ser chata e frustrante: apenas queremos espectáculo, para que a nossa vidinha pareça menos chata e frustrante. (Chamem-me moralista, se quiserem… e depois fiquem surpreendidos quando virem casos ainda piores… O que, aliás, será inevitável se continuarmos nesta alegre alarvidade.)
Mas eu dou-vos um exemplo.
Aqui há uns dias, em Almada, vi um acidente de carro: um condutor enfiou o seu automóvel contra um semáforo, na Praça São João Baptista.
Ora, como é de esperar (e como é natural, visto tratar-se de uma anormalidade que surge de repente no quotidiano), juntou-se um grupo de “mirones” para observar o espectáculo.
Claro que eu também lá fui. Tenho curiosidade, como toda a gente.
Mas o que vi deixou-me espantado (aliás, isso é que me deixou espantado, não o vídeo que deu o pretexto para esta crónica).
E vi o quê?
Bem, como hei-de explicar?
No grupo de espectadores, havia os que observavam de maneira mais ou menos interessada, ou mais ou menos desinteressada; havia os que demonstravam a habitual “compaixão” com a “vítima” (o condutor que, de resto, parecia mais assustado com o que lhe acontecera, mas não muito “aleijado”) – e isso (mostrar “compaixão”) também é natural porque, quanto mais não seja, ajuda a que as pessoas “condoídas” se sintam um bocadinho melhor consigo próprias…
Mas havia também outro grupo, de jovens para aí com vinte e poucos anos (está bem, eram a minoria…) que observava o condutor encarcerado, olhando para a cara do homem, com evidente gozo. Não sei se estão a imaginar, mas era um olhar “guloso”, um olhar de prazer. Um esgar que eu conheço bem, porque também conheço alguns filhos da puta – desculpem lá a expressão, mas não encontrei outra mais adequada – que gostam de se divertir com a humilhação dos outros… mesmo que não conheçam, de lado nenhum, esses outros (se conhecessem, ainda poderia existir alguma explicação que não fosse do foro patológico).
Ora bem: eu, na ocasião, não consegui entender qual era a piada. E ainda hoje não consigo.
Parece-me muito preocupante ver que um simples acidente de viação já não é apenas o tal “escape” para a realidade “chata” do quotidiano – é motivo de troça! Mas porquê?
Se chegámos a um ponto da nossa História (enquanto Humanidade, entenda-se)
em que a única coisa que conta é o imediatismo, a piada fácil, o deixa andar, o olha o gajo todo partido que giro deixa cá aproveitar antes que me aconteça o mesmo a mim, ó gorda sai da frente que eu quero filmar, não te metas que isto vai dar “fight”, etc etc etc – mas só isto e mais nada… como querem vocês que eu me admire quando vejo coisas como a que vi (vimos) acontecer numa sala de aula portuguesa?
Claro que é fácil deitar a culpa (em exclusivo) para cima daqueles jovens, que se comportaram como perfeitos imbecis – e meter a cabeça na areia, assobiar para o lado, deixar andar, e essas coisas todas.
Só que, se não olharmos para nós próprios e para a sociedade em que vivemos e da qual somos construtores e cúmplices, bem podemos (como se dizia no meu tempo) fiarmo-nos na virgem e não correr.
E, se continuarmos sem fazer nada, teremos todos um belo futuro: quando a “velha cair”, cairemos todos com ela!