quarta-feira, março 21, 2012
A marca da ditadura. E a ditadura das marcas
O sistema político-económico em que vivemos tudo transformou (e transforma) em objecto de negócio. O lucro é o seu valor moral mais elevado. "Resolveu a dignidade pessoal no valor de troca, e no lugar das inúmeras liberdades bem adquiridas e certificadas pôs a liberdade única, sem escrúpulos, de comércio", escrevem Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista.
E, noutra passagem do mesmo livro "A burguesia despiu da sua aparência sagrada todas as actividades até aqui veneráveis e consideradas com pia reverência." Pois que "A burguesia não pode existir sem revolucionar permanentemente os instrumentos de produção, portanto as relações de produção, portanto as relações sociais todas" (...) "Todas as relações fixas e enferrujadas, com o seu cortejo de vetustas representações e intuições, são dissolvidas, todas as recém-formadas envelhecem antes de poderem ossificar-se. Tudo o que era dos estados e estável se volatiliza, tudo o que era sagrado é dessagrado, e os homens são por fim obrigados a encarar com olhos prosaicos a sua posição na vida, as suas ligações recíprocas."
"Tudo o que era sagrado é dessagrado": tudo se compra, tudo se vende - até a imagem de ditadores. E mesmo a imagem de revolucionários (vejam o que se tem feito com a famosa fotografia de Che Guevara - sobre isso escrevi no "post" abaixo deste).
Vendem-se presidentes como se fossem sabonetes.
E pretende-se vender em Portugal o vinho Salazar como se vende na Austrália o gelado Magnum Cherry Guevara.
"É tudo negócio, nada de pessoal", como diziam os mafiosos dos filmes de Francis Ford Copolla. É a lógica do capital.
A ideia peregrina que a câmara municipal de Santa Comba Dão teve - criar a marca salazar - tem enfrentado a contestação de pessoas que não se esquecem que Salazar foi não uma garrafa de vinho, mas sim um ditador que manteve Portugal num regime opressivo de estilo fascista e colonial, que promoveu e defendeu a iliteracia, que convencia o povo de que a pobreza em que vivia era uma virtude e uma honra (e ao mesmo tempo mantinha os cofres do Estado cheios de ouro), que mandou jovens matar e morrer numa guerra injusta e que obrigou tantos outros a emigrar.
E é claro que temos de lutar contra isso. Contra esta e todas as tentativas de branquear a imagem do ditador e da ditadura.
Vender um "vinho salazar" pode ser acima de tudo um negócio para fascistas e saudosistas mas é, também, obviamente, uma banalização inaceitável de algo que não pode ser olhado senão como um mau exemplo, com o qual temos de aprender (para não o repetir) em vez de deixarmos passar como mais uma banalidade. Concordo que devemos combater tudo o que possa servir como pretexto para reescrever a História (ou esquecê-la, o que é quase tão mau).
Mas é boa ideia, também, tentarmos alargar o horizonte da nossa percepção. Ver para além do nevoeiro de propaganda que nos rodeia. Não agir apenas por reflexo e quando o mal já está feito ou em vias de se concretizar.
Se chegámos a este ponto não foi só porque alguém de repente se lembrou que podia fazer negócio com a "marca salazar".
Se alguém se lembrou que podia fazer negócio com isso, é porque sabe que à partida terá clientes. E se quem quer fazer uma coisa dessas acha que vai ter clientes, então sabe que há pessoas dispostas a esquecer (ou a não querer conhecer) o passado ainda não muito distante. E que haverá, até, pessoas para quem o nome Salazar não diz nada. É mais uma marca entre tantas outras. Tal como (lamento dizê-lo) é para muitos jovens por todo o mundo a marca Che Guevara: uma entre tantas outras.
Não, não estou a querer comparar o revolucionário com o ditador! Obviamente que não! Estou a comparar a apropriação que o capitalismo faz das figuras de um, de outro, e do que mais aparecer e der lucro - depois de devidamente descontextualizado e esvaziado de sentido : "A burguesia despiu da sua aparência sagrada todas as actividades até aqui veneráveis e consideradas com pia reverência"
Vivemos numa ditadura de grandes multinacionais que, por todo o lado, vão impondo as suas leis e substituindo o papel que até há não muito tempo estava reservado aos estados. Os simbolos visíveis destes novos ditadores são as marcas.
Nesta sociedade consumista, as marcas substituiram (para uma grande fatia da população da Europa, América do Norte, Ásia, Austrália, e mesmo para muitos na América Latina e em África) os símbolos das ideologias.
As pessoas - os jovens, mas nao só os jovens - afirmam-se pelo que têm e podem exibir, e não pelo que pensam, pelas ideias que defendem e pela forma como lutam pelas suas ideias. Há excepções, evidentente. Há os que lutam contra este estado de coisas. Mas esses são ainda poucos.
Durante as últimas décadas as pessoas foram convencidas a acatar uma nova ideologia: a do consumo, custe o que custar e custe a quem custar.
Nos anos 90, ao mesmo tempo que se reduziam salários e se aumentava a exploração da mais-valia, dava-se às pessoas a esperança de uma vida melhor, com mais acesso a bens materiais.
Como foi isso possível?, poderão perguntar alguns. A resposta é: facilitando o crédito ao consumo! As pessoas não tinham assim tanto dinheiro, mas podiam pedir empréstimos para comprar bens de consumo. Empréstimos que, inevitavelmente, não poderiam pagar no futuro. E os bancos sabiam isso muito bem! Assim, os consumidores de ontem tornaram-se os reféns de hoje - reféns de um sistema financeiro que tem nos bancos a sua face visível e nas marcas os seus símbolos ideológicos.
Mas essa aparente prosperidade dos anos 90 não chegava a todos. Havia, ainda, uma classe média. Mas era relativamente pequena. Muita gente não acedia (ou muito dificilmente acedia) a esse paraíso consumista.
A maior parte das pessoas já não passava fome. A pobreza tinha diminuido, é certo. Mas o acesso aos bens de consumo da moda, como automóveis, telemóveis ou roupas de marca - e tê-los era sinónimo de sucesso, segundo a ideologia dominante - não era para todos.
E assim vimos, ao longo da década de 90, jovens dos subúrbios, mais ou menos organizados, a roubar e assaltar, não para comer, mas para ter acesso a esses bens. Os telemóveis e a roupa de marca eram os troféus mais apetecidos. Exibi-los era o sinal exterior de um "sucesso" ilusório.
A orgulhosa exibição de "roupas de marca" - ou seja, a orgulhosa exibição das marcas no corpo de quem deu dinheiro, ou roubou, para as ter (leia-se: propaganda grátis às marcas feita por quem adquiriu o produto) - só por si dava um tratado. Espero que alguém, um dia, o escreva.
Tal como o crédito ao consumo "oferecido" e "facilitado" pelos bancos, o culto das marcas viciou as pessoas. Fez com que todos - ricos, pobres, classe média, enquanto existiu - aceitassem como "natural" esta religião do consumo.
A religião não deixou de ser o ópio do povo. O vinho salazar pode ser uma merda. Mas o consumismo é a droga maior. Ambos intoxicam.
E todos nós, os que não se revoltaram, não reagiram e não denunciaram a tempo, estamos intoxicados e temos culpa por nos termos deixado intoxicar.
Estamos a tempo de sair disto? E queremos?
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3 comentários:
Olá, Vitorino.
Fizeste-me pensar e escrevi este texto, que não deixa de ser só a minha opinião num assunto que merece tanto debate. Aqui vai:
Vou armar-me em psicosociológico: a maioria da humanidade funciona à base da anestesia. Apesar de eu ser muito religioso (o que não quer dizer necessariamente que tenha igreja), acho que sim, “a religião é o ópio do povo”. A religião, como o futebol, as telenovelas mexicanas, o olá fresquinho, entre muito. As marcas cumprem um papel na nossa sobrevivência diária. Os empresários, as empresas, hoje ainda mais que ontem, sentem o poder que possuem na directa proporcionalidade em que os seus cofres se enchem. E perversamente, ou intencionalmente, sabem perfeitamente que têm esse poder sobre o mais comum dos cidadãos. A maioria das pessoas quer ter uma “vidinha”, quero dizer ter um casamento minimamente satisfatório, ter o sexo que se precisa, vir a ter filhos, ter momentos suficientemente agradáveis na relação, ou relações, beber uns copos com os amigos ou amigas, e tanta coisa. Sei que estou a ser minimalista, e que podia estender esta pseudoanálise a outros âmbitos. Eu que sou publicitário sei que jogo com os dados mais básicos do meu público. Eufemisticamente diria que vendo sonho (apesar do cinema ser a “prima donna” nesse aspecto). E por via do sonho vendo marcas. As marcas preenchem um vazio existencial, filosoficamente falando. Se me deter nas classes mais baixas, mais pobres, em que o pensamento é centrado no óbvio, as marcas tornam o óbvio mais dignificante. E revelador dos nossos instintos mais básicos. Quer para criar inveja, quer para assumir status, quer para dizer que se é um “garanhão”. Ou no caso delas, “que não anda com um maricas qualquer” ou que o homem delas tem mais pénis que outros. Podia esticar-me nesta conversa, e ela merece a nossa atenção com a experiência de vida de cada um de nós. Para concluir: na idade média, com noutras épocas, eramos uns “feios, porcos e maus”. Ao mesmo tempo pedreiros livres erguiam catedrais majestosas em louvor ao Senhor. Continuamos assim, venha o futuro que vier. Vivemos agora mais confortáveis, com mais saúde. E se calhar com mais felicidade. E as marcas entram nesse domínio. Se gostamos de uma boa mentira? Gostamos.
Olá, RR.
Sabes que o teu cartaz por um lado veio ao encontro de algo que eu já pensava escrever e por outro serviu de inspiração para desenvolver a ideia. Claro que o meu texto não é a ilustração do cartaz, nem o pretendia ser (confesso que tive até algum receio que pudesses julgar o texto abusivo). E como é óbvio não temos exactamente a mesma opinião sobre o assunto (mas andamos lá perto).
O teu comentário é uma grande contribuição para este debate e esta reflexão. Agradeço muito. Havemos de continuar a falar sobre estas coisas e todas as outras que a isto estão relacionadas.
Um abraço
Vitorino
Também para ti forte abraço. Óbvio que é um assunto polémico. Mexe com as nossas observações e pensamentos. Cá estarei para futuras opinações.
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