sexta-feira, março 23, 2012

Informação versus "comunicação" na arena da junk food mediática


Ontem foi dia de greve geral em Portugal. Uma greve que teve grande adesão e, portanto, grande sucesso nos objectivos a que se propunha (dados sobre a greve disponíveis em http://www.grevegeral.net).

Mas ontem foi também dia de manifestações e de cargas policiais.

Portanto - logicamente? - as "notícias" de hoje dão relevo às manifestações e cargas policiais, deixando para segundo plano a greve e os seus resultados.

Mas não só as "notícias" dos grandes órgãos de comunicação social. Também na internet o que mais se vê são imagens das cargas policiais, divulgadas por pessoas que, em princípio, teriam interesse em não alinhar no sensacionalismo que a comunicação social dominante promove.

Na minha opinião, insistir em imagens de violência sem as contextualizar apenas faz com que as pessoas se habituem mais e mais às imagens de violência. Não é assim que se ganham ou se mobilizam para uma causa pessoas que não estejam já sensibilizadas. Os outros (a maioria) olham para essas imagens como olham para tantas outras que se habituaram a consumir. Mesmo que se sintam indignadas, mesmo que manifestem simpatia por um (ou outro) dos lados "em confronto", não se querem envolver. Foram condicionadas a pensar assim. Não é à toa que se diz que vivemos numa "sociedade do espectáculo".

Eu sei: é uma opinião polémica. Mas é resultado do que tenho observado e analisado ao longo dos anos (e também, naturalmente, resultado da minha praxis profissional). Espero poder desenvolver e fundamentar melhor este assunto em futuros artigos.

Entretanto, ao olhar para a forma como as fotografias e vídeos das manifestações e cargas policiais de ontem têm vindo a ser divulgadas (e como, por terem audiência garantida, servem também para vender publicidade: um dos vídeos "amadores" feito numa das manifestações está a ser divulgado no site de um diário português... mas quem tenta aceder ao vídeo leva primeiro com publicidade a uma marca de automóveis - isto para dar só um exemplo), lembrei-me do livro "Jornalismo e Sociedade", escrito há uma dúzia de anos por um dos mais prestigiados jornalistas portugueses, Fernando Correia.

Aqui ficam algumas passagens que podem - espero eu - ajudar a contextualizar isto tudo (não dispensa a leitura do livro na sua totalidade).

"Nunca como actualmente foram tão evidentes a transformação da notícia em mercadoria e a sujeição das estratégias informativas às estratégias comerciais, de que a valorização do secundário e a subvalorização do importante, o sensacionalismo, a superficialidade, a informação-espectáculo e a explosão dos excessos da imprensa cor de rosa constituem, em planos diversos, expressões concretas.

Toda esta situação, como seria inevitável, tem-se reflectido na forma de pensar e de agir dos jornalistas, considerados individualmente e como grupo profissional. À prevalência dada aos imperativos comerciais e à subordinação dos critérios jornalísticos às chamadas exigências de mercado (mas quem é que faz com que as exigências de mercado sejam estas e não outras?), juntam-se uma série de outros factores que vão quebrando e dissolvendo a anterior homogeneidade profissional.

(...)

A prevalência absoluta das leis do mercado (isto é, da capacidade dos mais poderosos estabelecerem e arbitrarem, em seu proveito, as regras do jogo económico) e a centralidade social adquirida pela comunicação em geral e pelos media em particular, juntamente com a aplicação de novas tecnologias, trouxeram consigo formas diferentes de fazer jornalismo e novos enquadramentos profissionais. Seria totalmente errado fechar os olhos às realidades e não aceitar uma necessária e indispensável evolução nos modos de conceber o jornalismo.

(...)

Por um lado, o próprio facto de as novas tecnologias proporcionarem um extraordinário aumento da realidade acessível aos media sublinha a necessidade e a importância da tarefa do jornalista enquanto mediador (investigador, revelador e criador) entre essa realidade, cada vez mais vasta e diversificada, e o público.

Por outro lado, porém, o jornalista está ameaçado nos seus fundamentos pelas novas possibilidades técnicas (informação em maior quantidade, mais rápida, se necessário em tempo real, etc) - não, naturalmente, pela própria existência dessas novas possibilidades, mas sim pela sua apropriação e utilização ao serviço de estratégias mediáticas socialmente determinadas. Estratégias prioritariamente dirigidas, nomeadamente no caso da TV, para a valorização do efémero, do distractivo e do superficial, em prejuízo do profundo, do sério e do substancial (o que não significa que toda a informação tenha que obedecer sempre a estes critérios!)

(...)

Isto implica uma concepção dos media e do jornalismo não apenas enquanto mero negócio, mas como uma actividade com deveres e obrigações de natureza social, decorrentes da sua força e capacidade ímpares para influenciar a opinião pública. Esta concepção, para ser operacional, não pode constituir apenas património dos jornalistas, tendo também que ser, de alguma maneira, partilhada pelos agentes que intervêm na produção e edição de informação.

Existe um espaço de autonomia jornalística que, no entanto, tende a estar cada vez mais circunscrito aos quadros dos valores e dos critérios vigentes. O facto de, lamentavelmente, haver cada vez mais jornalistas que, por convicção ou não, participam diligentemente na concretização de tais valores, não é mais do que um reflexo - grave e preocupante - da situação dos media no ponto de cruzamento de interesses económicos, políticos e ideológicos, sob a batuta visível ou a inspiração oculta dos senhores do dinheiro.

(...)

Os manuais ensinam que o bom jornalista terá que ser culto, ter interesse pelas realidades humanas e curiosidade pelas coisas da vida, dominar bem as técnicas do ofício e respeitar a deontologia. Mas numa actividade como esta, tão próxima das pessoas, do seu quotidiano e dos seus problemas, e com tanta influência sobre elas, julgo indispensável, por parte do jornalista, o aprofundament da sua responsabilidade social.

Uma responsabilidade social sem a qual, ao esquecer as implicações económicas, políticas, culturais e religiosas inerentes ao jornalismo enquanto fenómeno social, o exercício da profissão se descaracteriza e empobrece, perdendo grande parte do seu significado e das suas virtualidades ao serviço da valorização e da transformação dos homens e da sociedade".

Fernando Correia
"Jornalismo e Sociedade" - Editorial Avante!, Lisboa, 2000

Entendem o que tem tudo isto a ver com a imagem acima (e com o contexto em que foi captada, e com a forma como está a ser divulgada e vulgarizada)?

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