sexta-feira, março 16, 2012

"Kony 2012": meias verdades, manipulação, infantilização do público

Daniel Oliveira escreve no Expresso um texto muito interessante e bem fundamentado, com o título Kony 2012: para lá da comoção da moda (http://expresso.sapo.pt/kony-2012-para-la-da-comocao-da-moda=f711978)

No final do artigo acrescenta, em rodapé, o vídeo - fenómeno viral - com a suposta "reportagem". Mas acrescenta também este, com a reacção das vítimas de Joseph Kony depois de uma projecção do vídeo realizada numa localidade do norte do Uganda por uma equipa da televisão Al Jazeera.

O visionamento do (pseudo) documentário provoca, nas vítimas de Joseph Kony, irritação e revolta - por se considerarem usadas (e abusadas, digo eu).

Para contextualizar o assunto, atrevo-me a reproduzir (com a devida vénia, já se sabe...) excertos do artigo de Daniel Oliveira (encontram-no na íntegra clicando no link que coloquei no final do primeiro parágrafo deste artigo).

"O documentário pela captura de Joseph Kony, realizado e divulgado pela ONG Invisible Children, tornou-se o mais rápido vídeo viral da Net. Mesmo sem saber muito bem onde fica o Uganda, o mundo acordou para as atrocidades da Lord's Resistence Army (LRA). Mas a indignação solidária tem, como sempre, um sabor de moda. Não resulta de uma posição informada, que compreenda as contradições de uma guerra civil, onde raramente há anjos e diabos.

Como tudo o que tem grande sucesso se expõe às criticas, surgiram muitas em relação ao rigor de um documentário maniqueísta, feito para emocionar e não para pensar. Quando as causas humanitárias são tratadas como campanhas de marketing é isso que acontece. A ação tem nascer da indignação. Mas esta tem de nascer da informação. A emoção acorda para problemas, mas, se nada se acrescentar a ela, a nossa ação em defesa dos outros pode bem passar a depender da manipulação. Seremos convencidos por quem fizer o melhor spot e escolher a melhor banda sonora. Agir por uma causa não é, não pode ser, o mesmo que escolher uma marca de cereais. Nem permitir, como faz o documentário em questão, que não nos dá qualquer informação de contexto do conflito em que pretende intervir, ser tratados, como ali somos, como uma criança de cinco anos incapaz de compreender as complexidades e contradições do mundo.

Não faltam interessados nos vastos recursos do Uganda - que não têm servido para melhorar a vida dos seus cidadãos. Nesses recurso incluem-se as reservas inexploradas de gás natural e petróleo. O governo formalmente democrático (se formos insultuosamente minimalistas no que consideramos ser uma democracia) do Uganda, que gere a miséria de um dos mais pobres países do Mundo, viola, com prisão e tortura de opositores políticos, deportações forçadas, violência sobre os refugiados, os direitos humanos dos ugandeses. No entanto, tem merecido generosos, mas não muito bem intencionados, apoios externos das potências ocidentais no combate a Joseph Kony. Um dos políticos que apoia este regime, Santo Okot Lapolo, aparece no documentário em causa. É responsável por homicídios e perseguições a opositores e acusado de corrupção, por desvio de fundos que eram destinados aos refugiados vítimas da LRA.

Não deixa de ser estranho que as mesmas potências que assistiram, quietas, aos apocalípticos massacres no Ruanda, à limpeza étnica do Darfur e aos atropelos sistemáticos aos direitos humanos por parte do governo ugandês, tenham, por Kony, um interesse tão grande. Suficiente para a mobilização de raros recursos financeiros e legislativos por parte da Casa Branca e do Congresso dos EUA. Num mundo que raramente se move por razões humanitárias, é sempre razão para parar cinco minutos e pensar. Mas, acima de tudo, vale a pena desconfiar de um documentário sobre um conflito civil onde tudo pareça demasiado simples. É que uma guerra civil não se explica ao estilo preguiçoso de Hollywood. Raramente é assim tão claro quem são os bons e os maus.

Não ponho em causa, pelo contrário, a necessidade de capturar Joseph Kony e obriga-lo a responder pelos seus inúmeros crimes. Mas, nestas matérias, defendo sempre a cautela: não basta sabermos quem estamos a combater, precisamos de saber o que move aqueles que, com muito mais poder do que os cidadãos, querem fazer com o nosso combate. E tentar perceber a verdadeira complexidade do que acontece no terreno.

O nosso apoio às vítimas de um qualquer conflito exige mais do que um "like" no Facebook ou uma lágrimas em frente a um computador ou uma televisão. Exige o trabalho e a exigência da militância numa causa. As contradições não nos podem paralisar. Mas não é o simplismo que nos deve fazer mexer. Porque a nossa ingenuidade bem intencionada pode bem servir interesses contrários aos valores que pretendemos defender."

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