Estou a ler um policial português - Mulher e Arma com Guitarra Espanhola - editado em 1968 (há quarenta anos), época em que os lusos autores desse género literário não vendiam e, para terem "audiência", assinavam as suas obras com pseudónimos como Ross Pynn (Roussado Pinto), Dick Haskins (António Andrade de Albuquerque ), ou Dennis Mc Shade (Dinis Machado).
Dennis Mc Shade era um dos meus "ícones literários". No entanto, praticamente não conhecia a sua obra, até há poucos meses. (É uma contradição, pois é... mas talvez um dia vos esclareça sobre o assunto...)
Conhecia passagens do "Molero" (de Diniz Machado), algumas recensões literárias de obras do Mac Shade... até que encontrei este livro no lixo!
Sim, no lixo: há um par de anos atrás, ia eu e o Jorge Feliciano (do Teatro Fórum de Moura) passeando e conversando pelas ruas de Almada, e encontrámos, junto a um contentor de lixo, algus sacos de plástico cheios de livritos de BD, alguns "westerns", textos de apoio para a disciplina de História, Curso Complementar, primeiro ano, de 1974/1975 (Ministério da Educação e Cultura, Secretaria de Estado da Orientação Pedagógica), "O Estrangeiro", de Albert Camus, e alguns policiais da "colecção Rififi" (Editorial Ibis), com títulos como "A Morte Ronda a Enfermaria" (de Ann Cardwell), "O Golpe das Moedas Raras" (de Richard Stark), e este "Mulher e Arma com Guitarra Espanhola".
Eu, que sou um inculto e nunca tinha lido Camus, fiz finca-pé para ficar com o estrangeiro e chamei-lhe um figo: devorei-o, rapidamente e em força. A seguir atirei-me ao Mc Shade mas, por motivos que não vêm agora a propósito, apenas li o início do livro, e os capítulos nove e dez (porque a acção se desenrola num bar de "literatos", chamado As Vinhas da Ira...).
Até que, na passada sexta-feira (3 de Outubro de 2008), veio a triste notícia da morte do Dinis Machado. E eu - má consciência... - lá resolvi, nesse mesmo dia, ler finalmente o livro que encontrei no lixo!
E o livro é tão bom, que quero partilhar convosco alguns excertos.
Então é assim: o protagonista desta estória (Peter Maynard, um assassino profissional com escrúpulos e critérios éticos e estéticos: gosta de música, de poesia, e só aceita contratos se considerar que o "serviço" corresponde a uma causa justa...) é chamado pelo milionário Steve Ricco para matar um outro assassino profissional: George, "o Menino".
E porquê? Porque Ricco, sentindo-se "traído" pela sua amante, Nora, contratara o "Menino" para assassinar a "adúltera". Mas o "Menino" foge com o dinheiro que Ricco lhe adiantara pelo serviço. E agora, o milionário receia que o "Menino" se tenha passado para o outro lado: receia que Nora, tendo conhecimento da tramóia, o tenha contratado para matar Ricco.
Mainard não acredita (porque o "Menino", afinal, também tinha os seus princípios éticos...) e recusa o serviço. Mas fica a matutar no assunto.
Vamos encontrá-lo, Maynard, no seu "habitat natural": a mítica grande maçã americana.
Leiamos o que ele nos diz:
Estávamos em Maio, o mês das flores. Mas em Nova Iorque não há fragrância de flores, há o cheiro dos homens que correm atrás da vida e há o cheiro do cimento que lhes absorve as horas e as ideias, por causa do dinheiro. Naquele momento, eu era um dos poucos novaiorquinos que não corria atrás de coisa alguma: dinheiro, poder, mulheres ou a juventude perdida. E se não fosse a circunstância de ter contra mim o Sindicato do Crime e a Mafia, podia considerar-me do lado de fora da maior competição fratricida do mundo, uma espécie de Jogos Olímpicos do Dólar. Ou uma peça chamada Estados Unidos da América, com milhões de figurantes seguindo a bandeira do Dólar, com dólares desenhados nos olhos, com dólares escondidos no coração, com dólares atravessados na garganta, dias muito dinâmicos e noites muito cansadas, publicidade, bairros de lata e arranha-céus, publicidade, combates de boxe e avenidas a «néon», publicidade, o eterno problema dos negros e «compre hoje mesmo o seu frigorífico», publicidade, mais material de guerra e «sorria como William Holden», publicidade, comprimidos para lembrar e comprimidos para esquecer, publicidade, e a manhã que nasce e tudo recomeça.
O meu último contrato rendera-me bom dinheiro. Partira para Roma seis meses antes. Parto sempre para Roma quando não me sinto seguro. Revejo a Capela Sistina, as garotas da Praça de Espanha, vejo o último Fellini ou o último Rosselini, compro livros que dificilmente encontro nos Estados Unidos, e espero que Johnny Arteleso, meu companheiro de infância e meu único verdadeiro amigo, me diga de Nova Iorque que o tempo está sereno. Então regresso.
(...)
Interessado na história que Ricco lhe contara, e disposto a esclarecer as suas dúvidas sobre o assunto, Maynard procura então o seu "único amigo" e principal informador, Johnny Arteleso, que o leva a um bar "underground" (que, por pura coincidência, me faz lembrar alguns locais que conheci em Almada e arredores, há alguns anos atrás...), onde poderão obter pistas sobre o paradeiro do esquivo George "o Menino". Porém, no desenvolvimento da narrativa, a gente até se esquece dos motivos que os levaram até lá...
(...)
- Como se chama o bar? - perguntei.
- «The Grapes of Wrath» - disse Johnny. - É um bar diferente.
- Diferente de quê?
- Diferente. É tudo.
Johnny fez o carro guinar para a direita e compreendi que existiam zonas de Nova Iorque que eu não sabia existirem. Passámos debaixo de uma espécie de arco de pedra e metemos por uma rua empedrada, com caixotes do lixo e sem candeeiros. Lembrei-me repentinamente da minha mocidade. Foi do cheiro que me chegou às narinas, o cheiro de tudo o que apodrece.
Johnny fez o carro guinar para a direita e compreendi que existiam zonas de Nova Iorque que eu não sabia existirem. Passámos debaixo de uma espécie de arco de pedra e metemos por uma rua empedrada, com caixotes do lixo e sem candeeiros. Lembrei-me repentinamente da minha mocidade. Foi do cheiro que me chegou às narinas, o cheiro de tudo o que apodrece.
(...)
- O bar - começou a dizer Johnny - não tem que ver com o Sindicato. É um bar estranho. Altamente reservado o direito de admissão. Nem se pode dizer que seja frequentado. Normalmente, «os irados» vivem mais no bar do que o frequentam. Formam uma espécie de grupo.
- E como vamos entrar? - perguntei.
- Dizemos o nome do homem com quem vamos falar. Eles adoptam todos pseudónimos de escritores.
- E com quem é que vamos falar?
- Emílio Zola.
(...)
Entrámos e a porta fechou-se atrás de nós. A primeira coisa que vi foi um grande clarão vermelho. A casa era vermelha, era tudo vermelho: as paredes, o balcão, as poltronas, os sofás (sim, havia sofás).
(...)
- «The Grapes of Wrath» é o inferno para os inocentes - disse o homem loiro, olhando para mim e sorrindo. - Além da sala vermelha, temos também a sala branca e a sala cinzenta, onde espraiamos a ira.
(...)
Um tipo que estava mesmo debaixo do quadro de Soutine, levantou-se e encaminhou-se para a sala. Trazia a mesma merda de sorriso. Cumprimentou-nos com uma pequena vénia e disse:
- Dentro de minutos, na sala cinzenta, Baudelaire recitará um excerto de «As Flores do Mal».
Era pequeno, magríssimo, mal vestido e usava sapatos quarenta e quatro. Tinha cabelo muito ondulado e dentes muito brancos. Foi-se embora, depois de outra vénia.
- Quem é este? - perguntei.
- Dentro de minutos, na sala cinzenta, Baudelaire recitará um excerto de «As Flores do Mal».
Era pequeno, magríssimo, mal vestido e usava sapatos quarenta e quatro. Tinha cabelo muito ondulado e dentes muito brancos. Foi-se embora, depois de outra vénia.
- Quem é este? - perguntei.
- Marcel Proust - disse Zola. - Todos os dias escreve uma página e depois rasga-a. É um génio. - Olhou para mim com os olhos muito escuros e apertados. - Um
génio. Percebe, insecto?
génio. Percebe, insecto?
- Perfeitamente - disse eu, conciliatório. - O Baudelaire já chegou?
(...)
Beeeemmm... peço desculpa por interromper, mas é só para acrescentar que a conversa que se segue não é tão inverosímil como poderá parecer a algumas pessoas
mais distraídas... ou mais... hummm... digamos que "caseiras". Adiante, portanto.
mais distraídas... ou mais... hummm... digamos que "caseiras". Adiante, portanto.
(...)
Coloquei os cotovelos em cima da mesa, olhei em volta e perguntei:
- Mas vocês fazem isto a sério ou a brincar?
- Mas vocês fazem isto a sério ou a brincar?
- A sério, meu amor - disse a Charlotte (nota do vitorino: Charlotte Bronte) - Não há nada mais sério do que isto. Acreditamos na arte como única forma de aproximação. Acreditamos especialmente na literatura, na força da palavra.
- Pois.
- O facto de tu não entenderes - disse ela - estava previsto nos textos sagrados, como diriam os místicos. És uma besta, meu amor. Não há nada a fazer a isso. Há milhões de bestas lá fora. Nascem, vivem e morrem a fazerem coisas estúpidas. Têm cultos mesquinhos, têm profissões e coisas assim. Alimentam inconscientemente tiranias, políticas e guerras.
- O templo do conhecimento - disse eu, quase para mim próprio.
- Não és estúpido de todo - disse ela, olhando para mim com certa benevolência. - Até já percebi que aprendeste umas coisas e vives no pior dos mundos: o mundo duplo, que é aquele em que morres e aquele que já te foi sugerido.
- Isso é verdade.
Houve uma pausa. O Zola sorria e Johnny olhava para ela com a sua natural timidez, quando alguém discorria sobre um certo número de coisas que lhe escapavam.
- Ali o teu amigo - disse ela, percebendo a timidez de Johnny - está muito mais certo do que tu. Vive de valores errados, mas são os valores que conhece. Um esquimó não sabe o que são os Trópicos, portanto os Trópicos para ele não existem.
- Johnny é um sábio - disse o Zola. - Vive no mundo do crime e é puro como um anjo. O inocente é o que não explica nada.
- Camus - disse eu.
- É exacto - disse ele. - Citei Camus. E depois?
- Depois, nada.
- Muito bem - interrompeu ela, com a mão transparente no ar. - Vive no mundo do crime e não perdeu a inocência. Mas o mundo do crime é apenas um sub-produto do mundo civilizado em que eles vegetam. - E apontou para nós. - Têm as pequenas emoções ilegais, coitadinhos.
- Charlotte - disse o Zola, metendo na boca um cigarro de ponta doirada - não é fácil, seja para quem for, escolher como tu escolhes. Quanto mais para eles. Não têm, sequer, iniciação. E vês o meu caso: existo nos dois mundos.
- Porque não és suficientemente rico - disse ela. - Se tivesses muito dinheiro, o mundo deles não te interessava. De resto, não te interessa: é ali que vais buscar o carvão para alimentar esta fogueira. Ao passo que eles, não. Podiam ser ricos como eu, que sempre seriam o que são: umas doninhas mentais.
(nota do vitorino: por esta altura, já eu me estou a desmanchar a rir... adiante)
Nunca ninguém me tinha chamado doninha. E disse:
- Nunca ninguém me chamou doninha.
- Já era tempo, meu amor - disse ela.
- Qual é a tua profissão?
- Assassino profissional.
- E depois, é parvo. Que é isso de assassino profissional?
- Matar pessoas, Charlotte. Por exemplo: tu zangas-te com o teu amigo Zola, queres ver-te livre dele e pagas-me para eu o matar. E eu mato-o, se achar que o devo fazer. Esqueci-me de dizer que sou um assassino profissional específico. Um assassino profissional com consciência. Um conflito vivo.
Ela olhou para mim com os olhos quase tristes.
- E fazes isso a sério ou a brincar? - perguntou a meia voz.
- Nem eu sei - disse eu, também a meia voz. - Mas vou dizer uma frase bonita: as coisas mais sérias são aquelas que fazemos a brincar.
- Não gosto da frase - disse o Zola. - Não gosto de trapézios literários. Pelo menos, daqueles que são muito evidentes.
Alguém bateu as palmas e uma voz disse:
- Baudelaire vai recitar «As Flores do Mal».
- Venham, meninos - disse a Charlotte. - E tu, meu amor - disse ela para mim - não mates ninguém no meio do recital, é de mau gosto.
O tio Baudelaire estava à entrada da sala que devia ser cinzenta. Sorria. A mesma merda de sorriso.
(...)
E pronto: como é de esperar, segue-se, no livro, um recital de poesia.
Não sei como termina esta estória. Sei que estou deliciado com o mui subtil sentido de humor, e com o génio (sim, génio - palavra que até uso
parcimoniosamente, mas que agora vem a propósito) de Dennis Mc Shade. Sei que vos recomendo vivamente este autor e este livro.
parcimoniosamente, mas que agora vem a propósito) de Dennis Mc Shade. Sei que vos recomendo vivamente este autor e este livro.
E sei também que quem, se algum de vós tem a triste ideia de me contar como a estória acaba, eu junto uns trocos e contrato o senhor Peter Maynard para um
servicinho muito eticamente - e, sobretudo, literariamente - justificável... Um desses serviços que Maynard não rejeita, capisce?
Se quiserem conhecer mais sobre Dinis Machado - e sobre Dennis McShade - estejam à vontade para consultar:
servicinho muito eticamente - e, sobretudo, literariamente - justificável... Um desses serviços que Maynard não rejeita, capisce?
Se quiserem conhecer mais sobre Dinis Machado - e sobre Dennis McShade - estejam à vontade para consultar:
Entrevista ao jornal Público (em ficheiro pdf):
http://static.publico.clix.pt/docs/Cultura/DinisMachado.pdf
Biografia sucinta:
http://www.citi.pt/cultura/literatura/romance/dinis_machado/
http://static.publico.clix.pt/docs/Cultura/DinisMachado.pdf
Biografia sucinta:
http://www.citi.pt/cultura/literatura/romance/dinis_machado/
3 comentários:
excelente homenagem a Dinis Machado.
também li os policiais de Mcshade, depois de o conhecer, pessoalmente, por curiosidade e por saber como e porque foram escritos...
por acaso, não tive a sorte de os encontrar no caixote do lixo, mas sim num alfarrabista, Vitorino...
Pois eu não tive a sorte de conhecer em pessoa o Dinis Machado (nem o Dennis McShade), Luís.
Mas penso que vou gostar muito do teu "Molero em Cacilhas". Quando tiver oportunidade de o ler, digo-te qualquer coisa.
A.V.
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