Publicado em 1999 pela editora Campo das Letras, "Cinco Conversas com Álvaro Cunhal" nasceu de um pedido de entrevista feito pela jornalista Catarina Pires, ao qual o dirigente histórico do PCP (que não era já secretário-geral desde 1992) respondeu: "que tal fazermos antes um livro?".
A autora (ou co-autora, como prefere apresentar-se) explica, no prefácio: "Eu já conhecia o Álvaro. Fiz um trabalho sobre ele para a Universidade e escrevi um artigo sobre os Desenhos da Prisão para a Notícias Magazine. Depois surgiu a ideia de o entrevistar. Pedi-lhe a entrevista. Ele aceitou. Um dia depois recebo uma chamada em casa. Era o Álvaro: "E se em vez de uma entrevista, escrevessemos um livro de conversas?". Surpresa total. Eu pedi-lhe uma entrevista, ele deu-me um livro."
E assim foi. Um livro com 5 conversas, agrupadas por temas: A História; O Mundo; A Política; A Arte; As coisas da vida.
Nas conversas, Álvaro Cunhal não foge a nenhuma questão, por incómoda que seja e, mais do que isso, ele próprio desafia várias vezes a entrevistadora a
"incomodar" - por exemplo, quando se refere ao colapso da União
Soviética e dos países socialistas do Leste da Europa, à crítica e
autocrítica do que estava mal no regime soviético (acompanhada, neste
caso, com o necessário elogio ao que a experiência do poder socialista
significou como avanço civilizacional relativamente ao capitalismo), e
depois, em aspectos como
- o exercício do poder:
"No que respeita à organização da sociedade e ao Estado, as lições da história obrigam a prevenções. O poder está muito viciado, o poder defende-se, o poder corrompe e é susceptível de corromper. O abuso de poder é fácil, nas instituições, na sociedade, nos órgãos de poder, em qualquer aspecto da vida social. Também nos partidos. É necessário impedir-se e pode impedir-se um poder assim concebido e realizado. Como? Com formas e mecanismos democráticos de fiscalização, incluindo por parte daqueles sobre quem o poder é exercido. Seja no Estado, seja na sociedade, seja na família, seja nos partidos."
- a visão exageradamente optimista e determinista que julgava ser possível mudar comportamentos adquiridos na ordem social definida pela luta de classes e pela desigualdade, apenas mudando as estruturas políticas e sociais:
"Nesta questão há qualquer coisa que, particularmente os comunistas, temos de aprender com o século que agora termina. Tomar consciência de que houve sempre uma avaliação irrealista e uma esperança irrealista em que uma transformação social, pela qual fossem liquidadas as grandes desigualdades, as grandes injustiças, as grandes misérias e flagelos do capitalismo, eliminaria causas sociais determinantes da formação e conduta negativa do ser humano, e podia levar à criação do homem novo num sentido geral da população.
Se a ideia, assim simplificada, se mostrou irrealista, concretizou-se entretanto na conduta e na vida de milhões de seres humanos empenhados nas transformações sociais libertadoras realizadas por grandes revoluções. Foi o caso da Revolução de 1917, que numa fase inicial e em vários momentos do Estado socialista, assim como muitas outras revoluções socialistas, democráticas, nacional-libertadoras que se deram no século XX, criaram centenas de milhares, mesmo milhões de seres humanos, de homens e mulheres, que deram tudo de si incluindo a própria vida. O mesmo na luta clandestina contra a ditadura fascista. O mesmo na Revolução de Abril. Esta ideia, que continua exacta, a do homem novo nestes termos relativos, foi utópica quanto à sua generalização à sociedade..."
Uma das questões mais interessantes do livro (na minha opinião, claro) diz respeito ao 25 de Abril e ao processo revolucionário. Lutando muito assertivamente (e bem!) contra a ideia muito difundida de que o 25 de Abril não teria sido uma revolução, Álvaro Cunhal lembra que, em pouco mais de ano e meio, por acção das forças revolucionárias, a sociedade portuguesa, as suas instituições e a sua vida política sofreram (ou beneficiaram de) transformações profundas e tão sólidas que demoraram décadas a ser desmanteladas pela ofensiva contra-revolucionária.
E dá exemplos, que não vou mencionar exaustivamente (leiam o livro, ora!), mas de que destaco o que diz respeito à Reforma Agrária:
"A criatividade dos trabalhadores e das massas populares em luta na revolução de Abril é um grande ensinamento. Para a Reforma Agrária na região de latifúndio do sul, tinhamos as experiências da União Soviética, kolkozes e sovkozes - cooperativas ou herdades colectivas -, experiências seguidas noutros países. Pareceu-nos que essas experiências podiam ser a solução e pusemos no programa. E no fim de contas, na realização da reforma agrária com a revolução de Abril, não resultou nem uma nem outra. As UCP / Cooperativas foram uma criação original dos trabalhadores portugueses. Eram unidades de trabalhadores com uma administração democrática e colectiva. Criaram-se cerca de 550 Unidades Colectivas de Produção, abrangendo um total de centenas de milhares de hectares de terra e milhares de postos de trabalho. Diversificaram-se as culturas, aumentou a produção agrícola e pecuária, introduziram-se máquinas, construíram-se instalações e oficinas, realizou-se uma notável obra social e cultural. Uma obra extraordinária, sob o fogo da reacção e de sectores do poder militar e político. Vinham delegações da União Soviética, da Bulgária e de outros países. Visitavam uma UCP e perguntavam: Isto é uma herdade do Estado ou uma cooperativa? Não era uma coisa nem outra. E admiravam-se dos resultados alcançados.
Catarina - E depois o poder político destruiu tudo?
Álvaro - Destruiu, levou alguns anos a destruir, mas acabou por destruir.
As grandes revoluções e as suas conquistas não foram só obra dos chefes, dos dirigentes, dos órgãos de poder instaurados. Nós, os comunistas portugueses, compreendemos uma revolução que se propõe realizar profundas transformações progressistas, não só com o apoio do povo, mas com o seu empenhamento, entusiasmo, criatividade e coragem."
E, porque nem tudo neste livro é política no sentido restrito da palavra (nem poderia ser, em conversas com uma personalidade tão rica e multifacetada como era a de Álvaro Cunhal):
"Catarina - Para não terminarmos a conversa sobre este tema em termos tão dramáticos e negativos e já que falaste em superstições - isto não tem muito a ver com a religião, mas sempre pergunto: acreditas na astrologia?
Álvaro - Bom, mudemos de rumo. Qual é o teu signo?
Catarina - Gémeos.
Álvaro - Oh diabo! Tu lês os horóscopos?
Catarina - Não.
Álvaro - Eu sou do signo Escorpião e tem sucedido que, quando chega o signo, recebo cartas amistosas escritas a sério ou a brincar, com o horóscopo apropriado. Num dos anos passados recebi um horóscopo de um astrólogo que já morreu e que me comunicava, e disse-o publicamente, que o horóscopo anunciava a minha morte nesse mesmo ano. Deve ter trocado os horóscopos.
Catarina - Felizmente. Se calhar era aquele que dizia todos os anos que a Ponte 25 de Abril ia cair e que o Sporting ia ser campeão...
Álvaro - Não sei se era o mesmo e não corro o risco de pronunciar-me sobre previsões ou insinuações futebolísticas, pois seria excessivamente arriscado. Deixo tal previsão aos astrólogos."
Por tudo isto "Cinco Conversas com Álvaro Cunhal" é um daqueles livros que frequentemente releio com prazer. E recomendo, claro!
1 comentário:
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