quarta-feira, abril 04, 2012

Phylosophya


Um dia, Toniano Arclos proclamou:

- O mundo não existe, sou eu que o invento. E talvez mesmo eu não exista, se aquele que me inventou se contenta em me imaginar.

- Oh, discípulo infame, oh degenerado! - respondeu-lhe, com pesar, o severo
Mestre Rinotiv. - Julgas, pois, que em semelhantes formas de forma obtusa se pode verter o mel que te destinei?

Toniano Arclos tremeu, perante a ira do mestre. Mas Rinotiv prosseguiu:

- Julgas tu, discípulo ingrato, ter o hálito divino por guia das tuas caminhadas intelectuais? Abre a mente e não mintas ao teu próprio âmago. Isto é, se queres saber! O mundo só existe, para ti, se o quiseres. Mas isso pouco lhe adianta. Não queiras, e o mundo continua a ser o que é, tu pouco lhe importas.

- Mas, Mestre... - atreveu-se o relutante Toniano - acho em seu discurso a contradição fundamental, aquela que existe no meu medo de existir não existindo, de não existir existindo. Se eu invento, como podeis vós, minha invenção, falar assim? Se me inventais, como posso eu sentir que sou não inventado?

- Pequena cousa é essa contradição...

- Não termina neste ponto, ó meu mestre. O difícil é ter o mundo na cabeça, se quiser, e no entanto ele continuar a existir, como vós afirmais, e, existindo, existir mesmo que eu o não queira...

- É essa a tua dúvida, discípulo hesitante?

- Sem dúvida, Mestre, que esta é a minha primordial e infinita dedução do indizível.

- Inefável se diz, oh desvairado! E quanto ao teu não saber do mundo, ele em si é já um pouco sábio; é sábio pelo que tem de inefável, sábio é pelo que tem de precipício, ou princípio de contradição. Perturbo-te, discípulo temeroso? Mas explico. Conheces aquele velho e brejeiro dito "se a pedra no deserto é desconhecida da minha pessoa, será lícito eu crer que ela exista?" e conheces o outro, quiçá não menos brejeiro porém superlativamente assertivo, "a pedra no meio do deserto não existe enquanto eu dela não tomar conhecimento"?. Conheces?

- Sim, Mestre, deveras conheço.

- Pois bem. Aquilo a que se chama realidade é por nós entendida segundo diversas alegorias. Há quem lhe chame labirinto, alguns preferem configurá-la como uma espiral; outros ainda dizem ser a realidade uma estória arbitrária e compulsiva, tal um diálogo interminável da mão direita do criador com o seu órgão criativo; e outros inventam... eu sei lá... Tal como o nosso computador central admite e proclama, também eu confesso que só sei nada saber. Mas, ao contrário do nosso computador central, conheço bem que a percepção das cousas que existem neste mundo é uma percepção fisiológica, logo, material, logo, o processo da percepção começa antes de a própria percepção se ter manifestado em todos e em cada um de nós. Entendes isto?

- Difícil é de entender, ó meu Mestre...

- Mas, pobre discípulo, qualquer livro básico de dialéctica psicologico-materialista te informa sobre estas cousas.

- Então, Mestre, somos apenas máquinas de perceber, e o mundo joga e brinca com as nossas fraquezas e imperfeições biológicas?

- Se assim o preferires entender, pode ser uma verdade. Mas lembra-te de entender isto: somos nós, és tu, quem faz o mundo. A pedra que vês, se a vês, não é a mesma que tocas, se lhe tocas. Porque já os átomos de pele e pedra se cruzam, se misturam. E, se a pedra é assim, tocas-lhe com os dedos e já não é; quebras e são duas pedras; imaginas e as pedras para ti se multiplicam. Afinal, a matéria do cérebro, e da mão, e da pedra, é matéria igual. Só a sua organização específica difere em pedra, mão e cérebro. Por fim, ao moldares as pedras que multiplicaste em novas pedras, crias um corpo diferente do teu, feito da mesma matéria, mas diferente por ser realidade nova.

- E a pedra que não vejo, por estar perdida no meio do deserto?

- De essa se pode dizer que tem a felicidade de não conhecer criatura tão terrível para com as pobres pedras dos desertos deste mundo.

- E devo crer que ela existe?
- E ela, deve crer que tu existes?

- Devo, então, Mestre, duvidar?
- Exacto.

- Como ela de mim duvida?
- Sem dúvida!

- Então, duvidar sempre, e de tudo?
- Sempre. E de tudo.

- De tudo?
- E sempre.

- Sempre?
- E de tudo!

- Uau!!!


Affonso Gallo

Texto publicado no poezine Debaixo do Bulcão
editado em Almada, no mês de setembro de mil novecentos e noventa e oito.

Nota: este é o único texto em prosa que se conhece desse obscuro autor almadense que assina com o pseudónimo de Affonso Gallo. De resto, pouco se sabe sobre este autor. Fernão Lopes, na primeira parte da Crónica de El Rei Dom João Primeiro de Boa Memória e dos Reis de Portugal o Décimo menciona um Affonso Gallo que, em 1384, sendo regedor da vila de Almadaã, foi capturado pelo exército castelhano e levado diante dos muros da fortaleza por um cavaleiro gascom de nome Mosse Ymam, muito homem de prol e bom homem de armas, que exigiu aos sitiados a entrega da vila pois, caso contrário, o regedor havia de morrer. E responderam-lhe os de dentro que bem os podia elRei de Castela matar se quisesse, mas que a vila não dariam por cousa alguma que fosse. E como o cavaleiro gascom não lhes deu ouvidos e continuou exigindo a rendição da vila, os de dentro fizerom prestes um trom pequeno e tiraram-lhe dantre as ameias. E foi tal sua ventura que o tiro deu com ele morto por terra e ficou Affonso Gallo vivo de pé (supõe-se, aliás, que é deste episódio que deriva a conhecida expressão popular portuguesa "grande galo!"). Além disto, existe, na toponímia almadense, uma Rua Affonso Gallo. Contudo, os estudos científicos até hoje realizados, bem como as especulações filosóficas sobre o assunto não comprovaram que se trate do mesmo Affonso Gallo - e há, de resto, razões bem fundamentadas para supor que o não seja.

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