sexta-feira, setembro 16, 2011

«O neoliberalismo instituiu a "crise" como um regime político» - José Goulão



Desde que me lembro de andar cá andar pelo mundo, sempre tenho ouvido falar em crise. Foi a crise do petróleo nos anos 70, as diversas crises dos anos 80 - e até dos anos 90! - depois a do princípio do século 21, e agora esta. Ou estas... (será a de 2008 a mesma que vivemos agora)?

Mas também, desde há muito tempo, ouço pessoas dizerem-me que as "crises" (assim, entre aspas) não são mais que desculpas que os governantes arranjam para nos pedir sacrifícios. Ou que (outra opinião que há muito tenho ouvido) a crise, neste caso sem aspas, é afinal inerente ao próprio sistema.

No livro "Pagadores de Crises" (Sextante Editores, 2010), o jornalista José Goulão ajuda-nos a entender o mundo (e as crises) em que vivemos, e como chegámos ao que chegámos.

Mas este não é um trabalho "de tese". É, antes, uma investigação jornalística, muito bem fundamentada. Parte de factos, e não de opiniões. Factos que podem ser verificados e confirmados por qualquer um de nós - quase toda essa informação encontra-se publicada e acessível na internet - e que são, diria, coisas até do senso comum. Nada de teorias da conspiração, aqui!

Sabe-se que o liberalismo é uma teoria nascida no século 18 que defende a mínima intervenção do Estado nos assuntos económicos; que a teoria foi retomada e desenvolvida no século 20, na Europa e nos EUA; que depois de diversos debates entre os teóricos neoliberais prevaleceu o modelo de Milton Friedman e da "Escola de Chicago"; que alguns dos seus alunos (e o próprio Friedman) aplicaram o modelo na prática e à escala de um país pela primeira vez no Chile de Pinochet, a partir de 1973; que o modelo começou depois a expandir-se a partir do Reino Unido de Tatcher e dos EUA de Reagan; que hoje está implantado em praticamente todo o mundo. Isto são os tais factos incontestáveis e verificáveis (se quiserem aprofundar o assunto este artigo da Wikipédia pode ser um bom ponto de partida: http://pt.wikipedia.org/wiki/Neoliberalismo).

Faltava apenas relacionar esses factos, aprofundar a compreensão dos mecanismos - políticos, sociais, económicos, propagandisticos - com que funcionam, e apresentá-los numa "linha de tempo", para contar a história dos últimos 40 anos. Que é, portanto, a história do aparecimento, desenvolvimento e consolidação desse "regime universal" (definição do autor) que hoje nos governa. José Goulão faz isso. E, partindo dos factos, chega a conclusões que, para muitos de nós, poderão ser perturbadoras

Mas, também aí não será muito difícil concordarmos com o autor. Se pensarmos nos factos que nos são apresentados, se soubermos reflectir sobre eles - se soubermos pensar com o tal tipo de pensamento que utiliza o senso comum - descobrimos que a coisa pode muito bem ser assim como é descrita no livro, e não como somos levados a crer pela informação (ou melhor: pela falta de informação sobre o assunto) com que somos constantemente bombardeados.

Pensei fazer uma recensão crítica do livro. Mas não tenho jeito nenhum para essas coisas. Deixo-vos algo melhor: a transcrição de parte de uma entrevista dada por José Goulão a outro jornalista (José Manuel Rosendo), na Antena 1, em 2010. (O áudio integral da entrevista encontra-se no site desse canal, ao qual podem aceder clicando aqui.)


JMR - Depois de 40 anos de jornalismo, um livro que não podia ser mais pertinente: Pagadores de Crises. Sendo que logo na capa se anuncia que "a crise é o sistema político em que o voto de todos garante o bem estar de apenas alguns. José Goulão, este dito aplica-se a Portugal?

JG - Claro. Aplica-se no fundo ao mundo inteiro e - por questões absolutamente normais, de convivência universal - aplica-se a Portugal.


JMR - Um livro sobre a crise em plena crise...


JG - É um livro sobre a crise em plena crise, embora deva confessar que a génese (do livro) não é esta actual crise, é a crise de 2007. A ideia nasce aí. A realidade veio confirmar a inves
tigação. Ou seja, que o neoliberalismo instituiu a crise como um regime político. Porque foi criando maneira de combater as defesas das pessoas, as defesas dos sistemas sociais, e neste momento afirma-se plenamente como aquilo que é: governar em nome do lucro e no essencial contra as pessoas. O livro explica esta história desde que podemos ir buscá-la. Pode ser chocante para as pessoas que estas coisas sejam afirmadas com esta crueza, mas na verdade podemos ir buscar a génese do regime universal que hoje nos governa à experiência que foi feita no Chile de Pinochet. Porque aquilo que na altura os mentores económicos do Chile de Pinochet fizeram não é mais do que aquilo que nos está a acontecer e que nos vemn acontecendo nos últimos anos. E basta ver as questões das privatizações, do ataque às pensões sociais, aos salários, aos sindicatos, aos direitos fundamentais das pessoas, designadamente o direito à greve... Tudo isto com que vivemos hoje em dia, se formos investigar a história dos últimos 40 anos, vamos encontrá-las exactamente no Chile de Pinochet, no Reino Unido da sra. Tatcher...

JMR - E tudo isso feito por governos que têm a legitimidade do voto. Esta ideia de que o voto de todos garante o bem estar de apenas alguns significa que a democracia está moribunda?

JG - Significa que a democracia ficou emparedada naquilo a que podemos considerar a convergência num grande bloco a que se chama os partidos estruturantes ou os partidos com vocação governamental - como se todo o mundo e todas as pessoas dependessem das discussões que se passam por exemplo entre o engenheiro Sócrates e o dr. Passos Coelho
(obs: a entrevista é de 2010). Ora, a democracia é muito mais do que isso, é muito mais do que essas duas pessoas ou de quem as representa em conjunturais negociações. E democracia somos nós todos, o Estado somos nós todos. Mas aquilo que se verifica é o esvaziamento completo do Estado como aparelho dos cidadãos. E o Estado está um resíduo desprestigiado, ao serviço de interesses que não são propriamente os dos cidadãos, mas de alguns cidadãos que parecem ser mais cidadãos que os outros. E esta é a realidade desta crise que todos nós pagamos - por isso "Pagadores de Crises" - para apenas alguns viverem, e viverem bem. Onde é que está nisto a democracia? Está em que todos votamos, e votamos livremente, e falamos livremente. Agora, podemos não ser ouvidos? Podemos. E é o que está a acontecer: não somos ouvidos. E o nosso voto depois de colocado na urna segue um destino que nenhum de nós controla porque encaminhado para dois partdos que depois entre si mesmos têm birras mas não têm visões diferentes da governação. E a democracia encaminha-se depois para as decisões desses senhores. Isto é uma democracia emparedada e há que libertá-la. É um simulacro de que alguns se aproveitam usando o voto de todos nós.

JMR - Isto é um livro carregado de ironia. Aliás, ao longo do livro chama a atenção para isso mesmo. Não corre o risco de provocar más interpretações? Ou pelo menos não conseguir que a interpretação dada seja aquela que é pretendida?


JG - A ironia é uma forma de comunicação para pôr de certa forma a realidade a nu, e por vezes a ridículo. Embora este ridículo seja ridículo com coisas muito sérias, que são a nossa vida, a sobrevivência de milhões de pessoas que vivem num mundo completamente desregulado e cheio de desequilíbrios. Desequilíbrios esses que se aprofundam. Eu creio que a ironia é uma forma de chamar muito a atenção para a crueza desta realidade.É um livro polémico, claro. É um livro que vai gerar opiniões muito divergentes. As pessoas podem não estar de acordo, ótimo. Aliás, a democracia é exatamente isso. Mas é um livro que através da ironia, através de factos, e os factos estão lá, e são factos que qualquer um de nós tem a noção de que são assim mesmo, e as pessoas tirarão as suas ilações e sobretudo se as compararem com a vida que vivemos hoje e com aquilo que se passa à nossa volta.


JMR - A crítica ao capitalismo selvagem é muito forte. Como é que os pagadores de crises podem deixar esse estatuto nada invejável?


JG - Fazendo funcionar a democracia. É essa a questão, é desbloquear a democracia. Assumirem-se cada vez mais como cidadãos e conseguirmos todos arranjar maneira de sermos ouvidos. Deixarmos de estar a votar para surdos e para pessoas que já, independentemente daquilo prometem, depois fazem aquilo que lhes apetece. A democracia tem espaços, tem virtualidades. As liberdades têm este espaço amplo de podermos discutir. É questão de que estas realidades sejam denunciadas de uma maneira cada vez mais evidente, furando também o bloqueio de comunicação. Porque como sabemos todo este regime, digamos, universal beneficia de um sistema brutal de propaganda, que é montado através dos grandes meios de comunicação social, subservientes, no fundo, ao próprio regime.


JMR - É possível fazer uma reforma deste capitalismo ou este é um poder que não admite reformas?


JG - Este poder não admite reformas. Podendo a crise se considerada como um estado supremo do neoliberalismo... Estes regimes vão apodrecendo, como todos os regimes autoritários - e este é de facto um regime autoritário, na sua essência, não por vezes naquilo que nós identificamos como um regime autoritário à Pinochet, ou ditatorial, mas é autoritário porque não permite espaços de contestação efectivamente eficazes. É contestação pela contestação. Este neoliberalismo não se suicida, como eu digo no último capítulo, é preciso digamos que, e também aqui recorrendo à ironia, suicidá-lo. É preciso transformar toda esta sociedade e para isso é fazer funcionar a democracia. E assumirmo-nos todos como cidadãos e de alguma maneira trabalharmos todos para que o Estado seja colocado ao serviço dos cidadãos e deixe de ser esta coisa híbrida, este molusco que as pessoas acabam por desprezar. Porque quem está à cabeça do Estado no fundo não gosta do Estado, acha que o estado está a mais, que o Estado é um mal necessário, e usa o Estado para servir não os cidadãos, mas alguns cidadãos, como já disse. Este sistema está muito bem instalado, consegue sobreviver, e sobrevive cada vez mais, à custa de nos ir espremendo a nós, pagadores de crises, cada vez mais. E democraticamente temos que reflectir, discutir, e fazer funcionar a democracia e fazer com que, de alguma maneira, sejamos ouvidos, se não por aqueles que continuarem surdos, por outros que saibam, ouvir, escutar, e que saibam no fundo governar. Governar em nome das pessoas e para as pessoas e através de mecanismos que sejam respeitadores das pessoas, que é isso que não temos hoje.


Nota de rodapé - José Goulão "é um jornalista português. Iniciou a actividade em A Capital, em 1974, e trabalhou em O Diário, no Semanário Económico e na revista Vida Mundial, de cuja última série foi director.
Foi também director de comunicação do Sporting Clube de Portugal.
Fez carreira na àrea de Política internacional , especialmente nas questões do Médio Oriente , sendo os seus comentários nesta matéria frequentemente requisitados por diversos órgãos de comunicação social , como a TSF e o Canal 2: da RTP" (segundo a Wikipédia).

Numa entrevista ao jornal de A Voz do Operário, prefere no entendo apresentar-se como "um jornalista, que foi um dia para Beirute, para a guerra de 1982 e ficou completamente fascinado pela problemática do Médio Oriente.
Um jornalista que quanto mais aprofunda o conhecimento sobre essa área menos sabe sobre ela, porque a riqueza cultural, civilizacional e o que está em causa naquela região é de tal modo arrebatadora que ultrapassa o fascínio... e é tão complexa, que é inimiga de quem se acha senhor da verdade.
Portanto, em relação àquela região, eu jornalista, não tenho nem a verdade, nem o conhecimento, nem o preconceito.
Sei que conheço o que lá se passa, mas não tenho a veleidade de conhecer o Médio Oriente.”

Nota de rodapé à nota de rodapé - José Goulão foi, igualmente, professor em cursos de Jornalismo realizados no Centro Cultural de Almada, na segunda metade da década de 1980. Foi nessa associação almadense que tive a oportunidade de o conhecer. E, se mais tarde enveredei também pela "carreira" (não simpatizo muito com essa palavra...) de jornalista, foi muito por influência do seu exemplo profissional. Não só mas também, como se costuma dizer...

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