domingo, agosto 14, 2011
Olhar para o mundo sem medos e sem preconceitos
Numa entrevista publicada no Ionline, o General Loureiro dos Santos parte dos acontecimentos ocorridos em Inglaterra nos últimos dias para uma análise à situação mundial.
A entrevista é extensa, está publicada integralmente no site - ler aqui - e o que reproduzo são alguns excertos em que o militar analisa os assuntos com mais preocupação de os entender de um ponto de vista social e não apenas geo-político.
Nesses momentos, Loureiro dos Santos consegue ser mais "marxista" que a maior parte dos analistas de esquerda - porque não se limita a tentar entender (ou apenas explicar, como fazem muitos "intelectuais de esquerda") como é que a miséria social (e cultural, digo eu) é o caldo de cultura para estes fenómenos, nem os "justifica" apenas com a ideia preconcebida (e muito confortável, para muitos, mesmo quando mal fundamentada) que isto é o prenúncio da grande revolta dos pobrezinhos que hão-de derrubar o capitalismo e essas coisas.
Pelo contrário: faz uma análise dinâmica, pragmática, e nada idealista nem fatalista ou determinista (no sentido alienante que a expressão pode ter). E chega mesmo a ser didáctico.
Vejam, por exemplo, como usa uma imagem tão simples para explicar a crescente proletarização da sociedade. Ou como a "sociedade da informação" condiciona a maneira como olhamos para o mundo e nos relacionamos com a realidade, deslumbrando-nos com a "novidade" de fenómenos que pouco ou nada têm de novo, ou como a virtualização da economia leva a fenómenos absurdos (mas com influência real) de que o "poder" artificial das agências de "rating" é exemplo acabado.
(O que está a acontecer em Inglaterra) É apenas vandalismo gratuito?
As razões profundas estão ligadas à construção das sociedades, começam nos guetos das cinturas explosivas das grandes cidades e há uma série de razões que originam situações assim. Não é a primeira vez que isto acontece em Inglaterra. Vemos as imagens de 1980 e são as mesmas. A segunda fase é que acho que mostra impunidade. Aquilo prosseguiu daquela forma porque a resposta não foi suficiente. (...)
Fala nas condições que propiciam situações destas. Quais são elas?
Discriminação social e o sentimento de que não são tratados como os outros. E depois a diferença entre os que têm muito e os que têm muito pouco...
E esse fosso está a aumentar...
Exacto. E o problema novo que altera tudo é que as sociedades foram sempre constituídas por dois mundos diferentes, mas não havia o que há hoje, que é a informação permanente. Ela transformou as coisas. Tudo aquilo que sempre existiu passível de originar actos de revolta agora está perante os nossos olhos, portanto os pobres, os que vivem mal, os que se sentem injustiçados ou discriminados, os que não sabem bem onde pertencem, comparam-se com os outros. E esse conhecimento permanente gera indignação. (...)
Podemos extrapolar esta situação e dizer, como alguns, que é um prenúncio do que vai acontecer em todo o lado?
Acho que tem de haver respostas rápidas a isto, porque esta crise trouxe uma situação nova. É que no passado, quando se falava de desemprego e utilizando linguagem militar, quem ia para o desemprego eram os soldados, os operários. Agora não, agora vão os soldados, os sargentos, os capitães, os majores, vão todos para o desemprego e há gente da classe média, até da média alta, desempregada e desesperada. Isto pode conduzir a revoltas organizadas e, em desespero, podem fazer-se muitas coisas. E esta situação deve merecer muita atenção dos responsáveis políticos, principalmente em termos preventivos. É preciso encontrar políticas que evitem estas situações.
Que tipo de políticas?
Não sei. Até agora eram apoios sociais, para amenizar as dificuldades, mas por causa da crise o que está a acontecer é que os apoios sociais estão a desaparecer. E isto está tudo inserido numa grande transformação estratégica. (...)
Acha que o sonho europeu falhou?
Houve uma série de pessoas com esse sonho, que viam uma Europa tipo Estados Unidos. Mas desde o início foi claro que nem a Alemanha, nem a França nem o Reino Unido estavam interessados nisso, porque não queriam que houvesse uma câmara alta em que o Luxemburgo pudesse pesar tanto como a Alemanha. Como é que a Alemanha podia admitir isso? Na UE nunca houve solidariedade. Eu escrevo isso desde o ano 2000. Que não pensemos que outros vão vir em nosso socorro. Como esta subida do preço dos alimentos: alguém pensa que, se nós estivermos aflitos sem dinheiro para comer, a Alemanha ou a França nos vêm dar alimentos e ficam eles com fome? Que ninguém pense nisso! Em Portugal houve líderes que se convenceram de que agora éramos todos iguais, podíamos ser todos ricos e andámos a gastar o que não tínhamos! Isto explica a nossa actual situação e não fomos só nós que o fizemos, foi a maior parte dos países. Não há solidariedade internacional e a prova é o que está a acontecer na UE. (...)
Falando em rating, o que pensa dessas agências? Ultimamente tem-se questionado muito a sua existência e poder.
O poder é-lhes dado pela forma como os estados reagem aos seus anúncios. Não são elas que detêm poder, quem lhes dá o poder são os estados. Quando os EUA ficam completamente à nora com a baixa do rating estão a dar-lhes muito poder. O capitalismo já não é aquele que os teóricos do século xx referiam. Agora quem controla são organizações acéfalas, que não se sabe bem o que são, nem quem manda lá... Mas são eles que manobram a economia mundial. E mais, hoje o dinheiro é virtual, são bits, aquelas coisas do computador, que não é nada [risos]. Se não houver mudanças nos estados democráticos, se não arranjarem forma de sair desta tendência quase inevitável, vamos caminhar para capitalismos do género russo ou chinês, autoritários, sem liberdades, sem democracia, e isso é um perigo. Os países democráticos têm de evitar que o actual capitalismo sem rosto se transforme em sistemas ditatoriais.
O que é que pode ser feito?
Têm de ser os jovens. O problema principal deles, hoje em dia, não se punha no meu tempo. Antigamente ter segurança no trabalho era um dado adquirido, não se pensava na fonte de rendimento. Agora isto cria desespero nos jovens. Mas há uma coisa que me espanta nos jovens hoje. No passado, com a revolta dos jovens de Maio de 68, havia propostas, coisas novas. Agora não, aquilo que os indignados dizem é que isto está mal e depois apresentam questões pontuais que passam por "dêem-me emprego". A ideia que dá é que eles concordam com este modelo, desde que lhes dêem um emprego. Isso é errado, porque o modelo é que está mal, foi o modelo que levou a esta situação! Têm de aparecer propostas e os jovens são os únicos com condições para as apresentar.
Uma ideia é pedir uma auditoria dos cidadãos à dívida pública.
Isso nem sequer é uma ideia original, mas parece-me razoável. As ameaças à segurança nacional neste momento não são susceptíveis de resposta militar, têm de ter respostas políticas, económicas, sociais, e espero que não venham a precisar de resposta militar. Há muita gente que vaticina isso, que diz que o que está a acontecer é o que se passou a seguir à grande crise dos anos 30, que começou por aqui: dívidas, nacionalismos, fascismos, guerra. Espero que não chegue aí, sinceramente, até porque as sociedades estão de tal forma vulneráveis e frágeis, por serem tão complexas, que não vão resistir a um abalo. Julgo que vamos passar por um período muito complicado, que não deverá ser muito prolongado - porque isto hoje está muito acelerado - e vão surgir soluções. O mundo nunca deixou de encontrar uma solução. Não pensemos que vamos desaparecer, até porque essas ideias são vendidas pelos mais velhos [risos].
Nota (propositadamente) final - a imagem que ilustra este artigo é um pormenor de uma foto-reportagem sobre motins de jovens em França, em 1983. Publicada no livro "L'Année de La Photo - Le grand show de l'actualité", edição Love Me tender - Sipa Press, 1983.
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2 comentários:
(por distracção trocaste os nomes, o entrevistado é Loureiro dos Santos)
opá, e que troca! obrigado pelo reparo. vou já emendar. :)
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