"Já descansa mais? Não, senhor doutor: o patrão resolveu dar mais descanso às bestas, que estavam a emagrecer!"
Augusto Henriques Pinheiro, médico, no livro "Minhas senhoras e meus senhores... - vida, fome e morte nos campos de Beja durante o salazarismo":
«Eu já lhe vou contar uma anedota. Não é anedota, não é anedota!
Eu estava lá (Baleizão), às tantas comecei a ser.. o consultório começou a ser frequentado por um homem, de trabalho, tostado do sol, que se ia queixar de fraqueza, de falta de forças, de fraqueza, de falta de forças, de fraqueza. Bom... bem, como eu sabia das dificuldades de alimentação, comecei a receitar vitaminas e extractos de carne, e não sei quê... Bem, aquilo que havia na farmácia e que pudesse ajudar a pessoa... bem! O homem ia...
Eu tenho contado isto muitas vezes, sempre da mesma maneira, porque aquilo ficou-me tão vincado, quer sob o ponto de vista da memória visual, quer sob o ponto de vista da conversa que tive com ele, e ele comigo, esse homem, que não falho nada, no meu relato não falho nada, corresponde na realidade ao que se passou.
O homem continuou a consultar-me, a ir à consulta, e a dizer que estava sempre fraco.
Bom, passadas duas ou três consultas, eu disse, Ouça lá, ouça lá, qual é o seu trabalho?, e ele contou-me qual era o trabalho dele: o trabalho dele (...) era o responsável por uma parelha de bestas. E então, levantava-se antes do pôr-do-sol, para estar, antes do nascer do sol, para estar ao nascer do sol numa herdade longe. Portanto, levantava-se por volta das três da manhã. Para quê? para aparelhar, aparelhar as bestas, pô-las ao carro, dar-lhes de comer, aparelhar, pôr-lhes o... dar de comer, pô-las ao carro e ir para a propriedade, estar a começar o trabalho ao romper do sol.
Atenção, no verão o romper do sol aqui é às seis horas! (...)
Portanto, ele tinha de ir à estrebaria, preparar os animais, dar-lhe de comer, preparar os animais, esperar qie eles comessem, aparelhá-los,(...) e ir trabalhar. E então quando... e então diga-me lá, então, e depois? Depois, eu, ao pôr-do-sol, deixo o trabalho.
O pôr do sol aqui, pá, são oito e meia, nove horas, está bem! Então... então, e depois, diga lá, Bom, chego por volta das onze horas a casa, onze horas, porque tenho que ir dar-lhes de comer novamente, às bestas... E quando me vou deitar onze e meia, meia-noite.
Eh pá, eu disse, Então está explicado porque é que você não pode... porque é que você não tem forças. Pois que o senhor trabalha de mais, descansa de menos. E, ainda por cima, com a alimentação fraca como era aqui no Alentejo, que, em regra geral, os trabalhadores rurais têm, isso explica... Olhe, ouça lá, porque..., eu ingénuo, ainda, ainda, eu ingénuo, Ouça lá, porque é que você não pede ao seu patrão para lhe dar mais descanso, para... enfim, descansar mais, não é, ter um período de descanso maior! Bem, lá lhe receitei mais umas coisas e tal...
Pois ele continuou a ir ao consultório dizer que estava mal, mais umas duas ou três vezes.
E um dia aparece-me risonho no consultório. E eu, querem ver que pediu ao patrão para lhe dar mais... já descansa mais. Então diga, diga! Já descansa mais, já disse ao seu patrão, e tal?, Não, senhor doutor, é que as bestas estavam a emagrecer e o patrão resolveu dar mais descanso às bestas.
Eh pá!!! Está a ver como eu fiquei, não é? Está a ver como eu fiquei? Como é que eu vi a mentalidade dos senhores da gleba. Os servos eram da gleba, a gleba era dos senhores.
E, portanto, estava tudo dito. Estava tudo dito!»
(Relato de Augusto Henriques Pinheiro, médico, no livro e duplo CD "Minhas senhoras e meus senhores... - vida, fome e morte nos campos de Beja durante o salazarismo" - arquivo de História Oral, Rede Museológica do Município de Beja. Edição C.M. Beja / Cooperativa Cultural Alentejana, Abril de 2006)
Augusto Henriques Pinheiro, médico, no livro "Minhas senhoras e meus senhores... - vida, fome e morte nos campos de Beja durante o salazarismo":
«Eu já lhe vou contar uma anedota. Não é anedota, não é anedota!
Eu estava lá (Baleizão), às tantas comecei a ser.. o consultório começou a ser frequentado por um homem, de trabalho, tostado do sol, que se ia queixar de fraqueza, de falta de forças, de fraqueza, de falta de forças, de fraqueza. Bom... bem, como eu sabia das dificuldades de alimentação, comecei a receitar vitaminas e extractos de carne, e não sei quê... Bem, aquilo que havia na farmácia e que pudesse ajudar a pessoa... bem! O homem ia...
Eu tenho contado isto muitas vezes, sempre da mesma maneira, porque aquilo ficou-me tão vincado, quer sob o ponto de vista da memória visual, quer sob o ponto de vista da conversa que tive com ele, e ele comigo, esse homem, que não falho nada, no meu relato não falho nada, corresponde na realidade ao que se passou.
O homem continuou a consultar-me, a ir à consulta, e a dizer que estava sempre fraco.
Bom, passadas duas ou três consultas, eu disse, Ouça lá, ouça lá, qual é o seu trabalho?, e ele contou-me qual era o trabalho dele: o trabalho dele (...) era o responsável por uma parelha de bestas. E então, levantava-se antes do pôr-do-sol, para estar, antes do nascer do sol, para estar ao nascer do sol numa herdade longe. Portanto, levantava-se por volta das três da manhã. Para quê? para aparelhar, aparelhar as bestas, pô-las ao carro, dar-lhes de comer, aparelhar, pôr-lhes o... dar de comer, pô-las ao carro e ir para a propriedade, estar a começar o trabalho ao romper do sol.
Atenção, no verão o romper do sol aqui é às seis horas! (...)
Portanto, ele tinha de ir à estrebaria, preparar os animais, dar-lhe de comer, preparar os animais, esperar qie eles comessem, aparelhá-los,(...) e ir trabalhar. E então quando... e então diga-me lá, então, e depois? Depois, eu, ao pôr-do-sol, deixo o trabalho.
O pôr do sol aqui, pá, são oito e meia, nove horas, está bem! Então... então, e depois, diga lá, Bom, chego por volta das onze horas a casa, onze horas, porque tenho que ir dar-lhes de comer novamente, às bestas... E quando me vou deitar onze e meia, meia-noite.
Eh pá, eu disse, Então está explicado porque é que você não pode... porque é que você não tem forças. Pois que o senhor trabalha de mais, descansa de menos. E, ainda por cima, com a alimentação fraca como era aqui no Alentejo, que, em regra geral, os trabalhadores rurais têm, isso explica... Olhe, ouça lá, porque..., eu ingénuo, ainda, ainda, eu ingénuo, Ouça lá, porque é que você não pede ao seu patrão para lhe dar mais descanso, para... enfim, descansar mais, não é, ter um período de descanso maior! Bem, lá lhe receitei mais umas coisas e tal...
Pois ele continuou a ir ao consultório dizer que estava mal, mais umas duas ou três vezes.
E um dia aparece-me risonho no consultório. E eu, querem ver que pediu ao patrão para lhe dar mais... já descansa mais. Então diga, diga! Já descansa mais, já disse ao seu patrão, e tal?, Não, senhor doutor, é que as bestas estavam a emagrecer e o patrão resolveu dar mais descanso às bestas.
Eh pá!!! Está a ver como eu fiquei, não é? Está a ver como eu fiquei? Como é que eu vi a mentalidade dos senhores da gleba. Os servos eram da gleba, a gleba era dos senhores.
E, portanto, estava tudo dito. Estava tudo dito!»
(Relato de Augusto Henriques Pinheiro, médico, no livro e duplo CD "Minhas senhoras e meus senhores... - vida, fome e morte nos campos de Beja durante o salazarismo" - arquivo de História Oral, Rede Museológica do Município de Beja. Edição C.M. Beja / Cooperativa Cultural Alentejana, Abril de 2006)
2 comentários:
Uma história chocante.
Infelizmente, continua a ser sempre necessário avivar estas memórias.
Visitei pela primeira vez este blogue e gostei.
Convido-o a visitar cadernosemcapa.blogspot.com
vou visitar!
AV
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