Este é para os que gostam de dizer mal do Brasil porque "é um país subdesenvolvido, terceiro-mundista, violento, onde nem sequer as crianças escapam à extrema miséria", etc.
Pois tomem lá:
Pois tomem lá:
«Certa manhã, chegava ao prédio onde trabalho quando um menino me fez parar. Queria vender umas tabletes de chocolate; parecia tão franzino, tão triste e humilhado que lhe dei algum dinheiro, antes de entrar no edifício.
Do térreo ao meu andar, sua história tomou outra dimensão. Já não era somente o seu desamparo a me afligir, mas essa miséria imensa que se multiplica e da qual ele era apenas um exemplo doloroso. Poucos a levam a sério, mesmo quando ela se faz global, como ocorre na África, a correrem as multidões famintas em busca dos víveres que do alto lhes enviam, como se um contacto mais humano, mais próximo e permanente não fosse ajuda indispensável.
E, não sei se pela idade, não consegui conter a minha emoção: pedi a um auxiliar que o fosse buscar na rua.
Conversámos. Perguntei-lhe de onde vinha. Respondeu-me ser de Minas, de Caratinga. Fugira de casa, passando a viver pelas ruas, a dormir nas calçadas junto aos Arcos da Lapa. Tinha onze anos.
Indaguei-lhe o que gostaria de ser: "Músico ou cantor", foi a sua resposta. E fiquei a olhá-lo, pensativo. Quantos, pobres como ele, se tornaram homens da maior importância, nas mais diversas profissões! E lembrava Camus, Chagall e o nosso Machado de Assis... Quantos talentos perdemos no Brasil por força desse desprezo permanente pela infância abandonada!
Disse-lhe que gostaria de ajudá-lo, mas que ninguém iria retê-lo, poderia ir embora quando bem entendesse. Pedi a alguém que comprasse roupas para ele: calças, camisas, sapatos. E com o menino de volta, de banho tomado, vestido decentemente, comecei a avaliar os problemas que me esperavam.
"Você inventa cada uma!", foi o que ouvi de minha filha Ana Maria, ao saber do que ocorria.
A cozinheira do meu escritório, Maria das Graças, logo se prontificou para tê-lo a dormir no seu apartamento. De dia, combinámos: ele ficaria pelo escritório e à tarde ela o levaria consigo.
A questão da moradia estava provisoriamente resolvida, mas o problema era complexo de mais. A primeira coisa a fazer seria que frequentasse uma escola. Não tinha documentos para isso.
Falei com um amigo. Sua mulher, generosa, prometeu-me cuidar do assunto. Geraldão, meu camarada do Partidão, sugeriu uma escola em Mangueira.
Durante quatro dias vivemos este romance angustiante. Sentia que o menino estava em dúvida: voltar para casa ou continuar com os seus companheiros a viver e dormir pelas ruas da cidade.
Duas vezes ele desapareceu, surgindo no dia seguinte, quase nu, sujo, só de calção. Tudo lhe haviam roubado. Da primeira vez ele parecia decidido a permanecer fora de casa: "Vou ficar na Lapa". Da segunda, para surpresa nossa, passou a dizer que preferia ir embora.
Com os trocados que lhe dei, comprou uma pequena máquina fotográfica; pediu-me que tirasse um retrato a seu lado. E depois de um dia inteiro a tentar obter a permissão da Polícia para voltar à sua cidade, pois era menor, lá seguiu o garoto para Caratinga.
É claro que conseguir tirá-lo das ruas foi para nós um desfecho feliz, mas que pouco, muito pouco, conta diante desse abandono inconcebível em que vivem milhares de crianças entre nós.
Lembrar essa pequena história, a pobreza a crescer por toda a parte, é o pouco que posso fazer, nessa luta contra os donos do poder e do dinheiro, que tanto desmerecem o nosso país.»
Do térreo ao meu andar, sua história tomou outra dimensão. Já não era somente o seu desamparo a me afligir, mas essa miséria imensa que se multiplica e da qual ele era apenas um exemplo doloroso. Poucos a levam a sério, mesmo quando ela se faz global, como ocorre na África, a correrem as multidões famintas em busca dos víveres que do alto lhes enviam, como se um contacto mais humano, mais próximo e permanente não fosse ajuda indispensável.
E, não sei se pela idade, não consegui conter a minha emoção: pedi a um auxiliar que o fosse buscar na rua.
Conversámos. Perguntei-lhe de onde vinha. Respondeu-me ser de Minas, de Caratinga. Fugira de casa, passando a viver pelas ruas, a dormir nas calçadas junto aos Arcos da Lapa. Tinha onze anos.
Indaguei-lhe o que gostaria de ser: "Músico ou cantor", foi a sua resposta. E fiquei a olhá-lo, pensativo. Quantos, pobres como ele, se tornaram homens da maior importância, nas mais diversas profissões! E lembrava Camus, Chagall e o nosso Machado de Assis... Quantos talentos perdemos no Brasil por força desse desprezo permanente pela infância abandonada!
Disse-lhe que gostaria de ajudá-lo, mas que ninguém iria retê-lo, poderia ir embora quando bem entendesse. Pedi a alguém que comprasse roupas para ele: calças, camisas, sapatos. E com o menino de volta, de banho tomado, vestido decentemente, comecei a avaliar os problemas que me esperavam.
"Você inventa cada uma!", foi o que ouvi de minha filha Ana Maria, ao saber do que ocorria.
A cozinheira do meu escritório, Maria das Graças, logo se prontificou para tê-lo a dormir no seu apartamento. De dia, combinámos: ele ficaria pelo escritório e à tarde ela o levaria consigo.
A questão da moradia estava provisoriamente resolvida, mas o problema era complexo de mais. A primeira coisa a fazer seria que frequentasse uma escola. Não tinha documentos para isso.
Falei com um amigo. Sua mulher, generosa, prometeu-me cuidar do assunto. Geraldão, meu camarada do Partidão, sugeriu uma escola em Mangueira.
Durante quatro dias vivemos este romance angustiante. Sentia que o menino estava em dúvida: voltar para casa ou continuar com os seus companheiros a viver e dormir pelas ruas da cidade.
Duas vezes ele desapareceu, surgindo no dia seguinte, quase nu, sujo, só de calção. Tudo lhe haviam roubado. Da primeira vez ele parecia decidido a permanecer fora de casa: "Vou ficar na Lapa". Da segunda, para surpresa nossa, passou a dizer que preferia ir embora.
Com os trocados que lhe dei, comprou uma pequena máquina fotográfica; pediu-me que tirasse um retrato a seu lado. E depois de um dia inteiro a tentar obter a permissão da Polícia para voltar à sua cidade, pois era menor, lá seguiu o garoto para Caratinga.
É claro que conseguir tirá-lo das ruas foi para nós um desfecho feliz, mas que pouco, muito pouco, conta diante desse abandono inconcebível em que vivem milhares de crianças entre nós.
Lembrar essa pequena história, a pobreza a crescer por toda a parte, é o pouco que posso fazer, nessa luta contra os donos do poder e do dinheiro, que tanto desmerecem o nosso país.»
Oscar Niemeyer
"As Curvas do Tempo - Memórias"
Edição portuguesa: Campo das Letras. Porto, 2000
Cf: poemas de Oscar Niemeyer no blog Debaixo do Bulcão
Ainda estive com vontade de acrescentar algum comentário sobre este texto, mas desisti de o fazer.
Cada um que tire as suas próprias conclusões (e faça as suas próprias comparações com o que acontece em Portugal).
Cada um que tire as suas próprias conclusões (e faça as suas próprias comparações com o que acontece em Portugal).
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