Skill: dom, arte, destreza, rapidez, habilidade (dos dicionários)
Antes do 25 de Abril, quando andava na escola primária (que era como se chamava então o ensino básico), fazia competições de leitura com um colega.
Já nem me lembro como a brincadeira começou. A professora chamava-o a ler um texto em voz alta para toda a turma ouvir, e ele lia-o muito depressa, pensando que assim demonstrava que já sabia ler muito bem. Ora, eu, que também pensava que já sabia ler muito bem, não me ficava - e sempre que a professora me chamava a ler um texto, lia-o ainda mais depressa do que ele. Claro que, quando o meu colega era novamente chamado a ler um texto, lia-o ainda mais depressa que eu. Depois, chegada a minha vez, eu respondia, lendo ainda mais depressa que ele. E assim sucessivamente. Até que, às tantas, a única coisa que interessava era a velocidade com que debitávamos sílabas quase sem respirar entre elas.
Tinhamos desenvolvido uma extraordinária competência para ler depressa. Uma habilidade. Um skill. (Palavra que não se usava naquele tempo - mas usar-se-ia hoje, certamente.)
Farta desse circo, a nossa professora disse-nos um belo dia, e muito diplomaticamente, que "ler bem não é só ler depressa: o mais importante é entendermos aquilo que se lê".
Confesso que, ao ouvir aquilo, não aceitei muito bem. Então, anda uma criança a esforçar-se para depois levar com isto? Não aceitei muito bem mas - como naquele tempo os professores tinham ainda alguma autoridade, as crianças alguma educação, e ninguém ficava traumatizado por tão pouco - não fiz cenas nem me fui queixar à mãmã ou ao papá. Pensei durante um bocadinho (pouco, como convém nessas idades) e rapidamente esqueci o reparo.
Depois, mudei de escola. Estava em São Pedro do Estoril e vim morar para um subúrbio de Almada, ainda em 1973. E aqui, como é natural, o ambiente era outro, intelectualmente muito mais pobre. E habilidades, competências, destrezas (numa palavra: skills) eram outros, também.
A chatice é que ninguém me avisou, e eu não podia adivinhar. Assim, quando fui chamado pela primeira vez naquela escola a ler um texto em voz alta, fiz aquilo para que estava treinado: debitei sílabas, rapidamente e em força.
Quando acabei a performance, ao olhar em volta, vi uma coisa extraordinária, um caso nunca visto. Professora e turma em silêncio, de olhos esbugalhados e queixo praticamente no chão, olhando para mim como se estivessem perante um extraterrestre, o último dos moicanos, o fim do mundo em cuecas ou... (inserir aqui metáfora ao gosto do freguês).
E eu mais surpreendido que eles. Então, mas não era normal, ler depressa?
Confesso que esses 15 segundos de glória me souberam muito bem, e deram-me uma ilusão de importância, grandeza, genialidade e essas coisas.
Grande erro, rapaz. Grande erro!
É que, se na escola de onde vinha olhavam para mim como um puto cheio de talento mas a precisar de aprender mais do que simples habilidades de circo - na escola para onde viera passei a ser olhado como o tipo "inteligente". E não, isso não era necessariamente um elogio.
Por uma questão de decência (e para frustrar as vossas expectativas) não vou contar aqui os dissabores que essa fama de "inteligente" me trouxe na escola. Basta, por agora, ficarem a saber que, no bairro de barracas de tijolo em que então vivia e que era habitado por uma classe operária (Lisnave e Setenave, maioritariamente) que, com o 25 de Abril, em breve ficaria em alvoroço, a minha fama de "inteligente" propagou-se como uma nódoa.
Assim quando se dão os acontecimentos revolucionários, no período 1974/1975, eu começo a interessar-me por política, começo a ir a comícios e manifestações, começo a achar que entendo os assuntos e que tenho opiniões, pelo que, sempre que digo qualquer coisa sobre qualquer coisa, lá vem a frase feita "ele é muito inteligente".
Não o diziam com maldade. Nem com ironia. Era mais com um misto de admiração, alguma inveja e uma certa dose de pena. Sim, pena: porque ser "inteligente" era, naquele contexto, não ser "normal".
Naquele contexto, o que interessava eram as competências que faziam das pessoas bons operários. A sua destreza, a sua habilidade, os seus "skills". E os meus "skills", naquele contexto, não serviam para nada. Eram "inteligência".
Claro que, com o decorrer do acelerado processo histórico que então se vivia, com a consciencialização política daquela classe operária, a inteligência (a que servia para mudar o mundo, não aquela que viam em mim) passou a ser mais valorizada. Infelizmente, isso durou pouco tempo. Mas adiante, que se vamos falar sobre isso não saimos daqui hoje.
Ora, toda esta história dos "skills" e da inteligência, acabou por ser útil anos mais tarde. Em 1981, depois de largar o ensino secundário porque achava que não aprendia ali nada que me interessasse, procurei instrução no Centro Cultural de Almada. E encontrei-a.
Aprendizagem ao mesmo tempo técnica, prática, teórica e integrada, abrangendo várias áreas do conhecimento. Aprendizagem que me habilitou a exercer actividades tão díspares como elaborar um cartaz, imprimi-lo, fazer a cobertura fotográfica ou em vídeo de um acontecimento, projectar para uma audiência filmes ou a reportagem que fizera em vídeo, sujar as mãos na serigrafia, organizar um evento, montar tubos, painéis de madeira e toldos para construir o espaço onde esse evento iria decorrer, massacrar furiosamente as teclas de um piano para fazer qualquer coisa parecida com música e depois ajudar a carregar esse piano escada acima para a sala onde, nessa noite, o maestro Victorino d'Almeida iria massacrar furiosamente as teclas desse mesmo piano para fazer música. Etc.
(Foi nesse tempo que defini dois objectivos, não sei já se ambiciosos ou modestos, para a minha vida: conhecer-me a mim próprio e alcançar o que então chamava uma visão global do mundo.)
"Skills"? Inteligência? Mas o que é que isso interessava? Interessava, sim, que estava a adquirir conhecimento e competências, a trabalhar e a divertir-me, assim, sem mais nem menos, experimentando muito sem me especializar em nada. E estava - pequeno pormenor... - a aprender a pensar.
Portanto, quando chega o momento de optar por uma profissão, vi-me com experiência de vida e competências técnicas para escolher entre várias opções possíveis, e com maturidade e esclarecimento suficientes para o fazer sem me arrepender mais tarde. (Obviamente, a conjuntura económica também favorecia essa possibilidade de escolha: depois de anos muito difíceis, estávamos então naquele período de crescimento económico, na transição da década de 1980 para 1990 - crescimento nunca igualado até hoje.)
Escolhi fazer rádio. Na rádio meteram-me a fazer jornalismo.
Aí, toda aquela destreza/rapidez/habilidade das competições de leitura da escola primária voltou, naturalmente e mecanicamente. Saber falar bem e depressa é (ou era) uma condição sine qua non para ser um bom locutor de rádio. Mas, para ser um bom jornalista, é preciso, também, não apenas saber ler bem o texto, mas saber entendê-lo bem.
Ter rapidez de raciocínio, sim, mas também ter clareza de raciocínio. E, acima de tudo isso, não apenas entender os assuntos (muito diversificados) com os quais trabalhamos, mas entender também como se relacionam, e porque são assim e se relacionam assim e não de outra forma qualquer. Chama-se a isso pensamento crítico. Eu chamo-lhe, também, inteligência. E sim, nesse tempo, habilidade e inteligência foram, indissociadamente, vantagem competitiva no mercado profissional.
Tinha razão, a minha professora da primária.
A inteligência não é um amontoado de "skills". No mínimo é a relação dinâmica entre todos eles. Talvez seja, ainda mais, um processo holístico, em que o resultado final é superior à soma das partes.
Não é, de certeza, uma exibição de habilidades circenses.
E quem ensina para desenvolver "skills" esquecendo-se de incentivar o pensamento crítico (e a inteligência emocional, de que não falei, mas que não é menos importante), estará, quando muito e na melhor das hipóteses, a formar bons técnicos, mas de inteligência limitada às funções que é suposto desempenharem. É a minha modestíssima opinião...
Chamam a isso inteligência? Pronto, chamem-lhe o que quiserem. Eu chamo-lhe (porque não?) uma máquina de encher chouriços. Informacionais, talvez. Mas chouriços, na mesma.
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