sexta-feira, janeiro 25, 2013

Explosão no 'Picapau Amarelo' (1994)



Morei durante muitos anos no bairro amarelo do Monte de Caparica (sim, esse, o popularmente chamado "Picapau Amarelo").

Em 1994 trabalhava eu como jornalista na Rádio Voz de Almada. E suponho que no dia 27 de Janeiro desse ano (uma quinta-feira) estaria a fazer o turno da tarde. Porque aí a meio da manhã (mais precisamente às 11h48, segundo relatam as fontes da época) ainda estava em casa, e à janela do 5º andar onde morava, na Rua do Moinho. A ver como estava o tempo antes de sair de casa, se ia chover, se precisava de me agasalhar muito e essas coisas... bem, ou tinha acabado de acordar, já não me lembro.

E então, bum! (sim, foi um bum! sem chama, relativamente pequeno e abafado, e não um BUM! ao estilo Hollywood - lamento desapontar-vos) ouço um estrondo ao longe e, logo a seguir, ao fundo da rua do lado esquerdo, umas coisas atiradas pelos ares. Coisas, tipo bocados da parede de um prédio, mobiliário e outros objectos que, normalmente, não sabem voar.

Ora eu era jornalista (já vos disse?) e, então, fiz o que qualquer jornalista teria feito: imediatamente agarro no telefone e ligo aos meus colegas da rádio a alertar que tinha acontecido qualquer coisa. Atende-me a colega Gertrudes Guerreiro e eu, para não ser demasiado alarmista, digo qualquer coisa tipo "olha, houve agora um rebentamento aqui no meu bairro, não sei ainda o que foi, mas vou lá abaixo ver o que se passa e já volto a ligar".

Ela primeiro riu-se, não sei se pela palavra "rebentamento" que usei em vez de "explosão" (que daria ao assunto um ar mais sério e grave, sem dúvida) ou se por não ser hábito os jornalistas telefonarem para os departamentos de informação a dar conta de assuntos de interesse informativo que tivessem testemunhado (e eu ainda trabalhava naquela rádio há menos de um mês - a bem dizer, eles ainda não me conheciam... ainda tinha feito poucos RMs...). Mas ficou logo alerta e interessada pelo caso, como compete a uma jornalista.

Então desço, vou ao café do outro lado da rua, e vejo já toda a gente assustada, dizendo que foi uma grande explosão lá para cima. Uma explosão de gás, pensava-se. E parece que foi feio, mesmo.

Pronto, confirmava-se. Volto para casa, ligo novamente para a rádio, confirmo que houve mesmo uma explosão (agora já me sentia à vontade para usar essa palavra). Ofereço-me para ir ao local fazer reportagem e peço que me enviem um carro de reportagem devidamente equipado (com microfone e equipamento de transmissão).

Não tenho dúvida nenhuma de que terei sido o primeiro jornalista a dar o alerta (pois se o fiz em tempo real e se não havia, que eu saiba, outros jornalistas por ali) e suponho que a Rádio Voz de Almada terá sido o primeiro órgão de comunicação social a ter conhecimento do ocorrido.

Mas foi o último a reportar! Até o Sul Expresso chegou antes!

Estava eu no local da guerra, perdão, da explosão, à espera que viesse o carro de reportagem, e vejo chegar, em caravana e numa correria, carros das televisões, rádios e principais jornais nacionais. Da Rádio Voz de Almada, népia. Só eu, mas sem nada que me identificasse. E porquê? Bem, parece que, lá na rádio, era muito complicado falar com a pessoa que poderia dar a autorização para que o carro saísse...

Enquanto não chegava o carro, desenrasquei-me com o que podia. Tento falar com as pessoas, gravo alguns depoimentos, peço para usar um telefone de uma das instituições de apoio social que existiam naquela rua, e vou enviando para a rádio a informação que consigo apurar. Era assim que se fazia quando ainda não tinhamos telemóveis e internet.

No meio da confusão e da aflição das pessoas que, de um momento para o outro, ficaram sem casa, às tantas começa a correr o rumor de que havia "um morto confirmado". E eu transmito-a em directo e sem a confirmar. Felizmente ninguém morreu e, no noticiário seguinte, lá tive que corrigir: "felimente não se confirma" o "morto confirmado". Asneira que me serviu de lição e que tentei nunca mais repetir. Nunca se dá uma informação como certa sem a confirmar primeiro!

Já agora, o que terá acontecido, segundo uma reportagem (não assinada e meio folclórica, para dizer a verdade) publicada no Sul Expresso no dia 3 de Fevereiro de 1994: "Na contagem das vítimas faltava uma criança, felizmente estava na escola e não sob os escombros". De acordo com o jornal, registaram-se "cinco feridos e vinte e uma famílias interditadas dos seus lares". Quanto às causas da explosão, não eram ainda conhecidas, mas falava-se de "suspeitas sobre uma possível fuga de gás butano, ou acumulação de biogás na fossa que canaliza os dejectos para o sistema de saneamento".
Para a maior parte dos órgãos de comunicação social aquilo foi um estrondo que nasceu e morreu ali. Nesse caso sim, podemos falar de um morto confirmado: o interesse pela sorte das pessoas que ficaram sem casa.

Mas a Rádio Voz de Almada era um órgão de comunicação local e, como tal, preocupava-se em ter assuntos locais nos seus conteúdos informativos. Portanto, em vez de deixarmos caír o assunto, tratámos de o acompanhar nos dias que se seguiram. As pessoas foram realojadas temporariamente em condições muito precárias, nos "fundos vazados" dos outros edifícios do bairro, enquanto esperavam ser enviadas para urbanizações do Estado (naquele tempo, sob tutela do IGAPHE - Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado).

O processo foi longo e chegou a dar origem a uma polémica quando o então Bispo de Setúbal, D. Manuel Martins (depois Bispo Emérito, porque um bispo nunca deixa de o ser), foi ao local, ficou impressionado com as condições em que aquelas pessoas estavam a viver e acusou forte e feio o IGAPHE de ser um "patrão sem rosto", insensível ao destino dos seus inquilinos. Viviamos então num tempo em que, apesar de tudo, muitos jornalistas ainda não tinham abdicado do seu dever de investigar para informar. E falámos com todos os que pudessem ajudar a entender (e a resolver) o problema - moradores, bispo, instituições de apoio social no terreno, responsáveis do IGAPHE...

Ainda tenho gravações de algumas dessas reportagens. Estou aqui a pensar com os meus botões que um dia destes edito o que tecnicamente ainda se aproveita e publico-as...

Notas de rodapé: as fotografias que acompanham este artigo são do jornal Sul Expresso, edição citada, que não menciona o respectivo autor; RM é abreviatura de registo magnético, ou seja, as gravações (registadas então em fita magnética) que os jornalistas faziam para passar no decorrer dos noticiários - acontece que, nos departamentos de informação em que trabalhei, tinha a fama, e o proveito, de passar muitos, demasiados, RMs.

domingo, janeiro 20, 2013

Essa treta dos "skills"

Skill: dom, arte, destreza, rapidez, habilidade (dos dicionários)


Antes do 25 de Abril, quando andava na escola primária (que era como se chamava então o ensino básico), fazia competições de leitura com um colega.

Já nem me lembro como a brincadeira começou. A professora chamava-o a ler um texto em voz alta para toda a turma ouvir, e ele lia-o muito depressa, pensando que assim demonstrava que já sabia ler muito bem. Ora, eu, que também pensava que já sabia ler muito bem, não me ficava - e sempre que a professora me chamava a ler um texto, lia-o ainda mais depressa do que ele. Claro que, quando o meu colega era novamente chamado a ler um texto, lia-o ainda mais depressa que eu. Depois, chegada a minha vez, eu respondia, lendo ainda mais depressa que ele. E assim sucessivamente. Até que, às tantas, a única coisa que interessava era a velocidade com que debitávamos sílabas quase sem respirar entre elas.

Tinhamos desenvolvido uma extraordinária competência para ler depressa. Uma habilidade. Um skill. (Palavra que não se usava naquele tempo - mas usar-se-ia hoje, certamente.)

Farta desse circo, a nossa professora disse-nos um belo dia, e muito diplomaticamente, que "ler bem não é só ler depressa: o mais importante é entendermos aquilo que se lê".

Confesso que, ao ouvir aquilo, não aceitei muito bem. Então, anda uma criança a esforçar-se para depois levar com isto? Não aceitei muito bem mas - como naquele tempo os professores tinham ainda alguma autoridade, as crianças alguma educação, e ninguém ficava traumatizado por tão pouco - não fiz cenas nem me fui queixar à mãmã ou ao papá. Pensei durante um bocadinho (pouco, como convém nessas idades) e rapidamente esqueci o reparo.

Depois, mudei de escola. Estava em São Pedro do Estoril e vim morar para um subúrbio de Almada, ainda em 1973. E aqui, como é natural, o ambiente era outro, intelectualmente muito mais pobre. E habilidades, competências, destrezas (numa palavra: skills) eram outros, também.

A chatice é que ninguém me avisou, e eu não podia adivinhar. Assim, quando fui chamado pela primeira vez naquela escola a ler um texto em voz alta, fiz aquilo para que estava treinado: debitei sílabas, rapidamente e em força.

Quando acabei a performance, ao olhar em volta, vi uma coisa extraordinária, um caso nunca visto. Professora e turma em silêncio, de olhos esbugalhados e queixo praticamente no chão, olhando para mim como se estivessem perante um extraterrestre, o último dos moicanos, o fim do mundo em cuecas ou... (inserir aqui metáfora ao gosto do freguês).

E eu mais surpreendido que eles. Então, mas não era normal, ler depressa?

Confesso que esses 15 segundos de glória me souberam muito bem, e deram-me uma ilusão de importância, grandeza, genialidade e essas coisas.

Grande erro, rapaz. Grande erro!

É que, se na escola de onde vinha olhavam para mim como um puto cheio de talento mas a precisar de aprender mais do que simples habilidades de circo - na escola para onde viera passei a ser olhado como o tipo "inteligente". E não, isso não era necessariamente um elogio.

Por uma questão de decência (e para frustrar as vossas expectativas) não vou contar aqui os dissabores que essa fama de "inteligente" me trouxe na escola. Basta, por agora, ficarem a saber que, no bairro de barracas de tijolo em que então vivia e que era habitado por uma classe operária (Lisnave e Setenave, maioritariamente) que, com o 25 de Abril, em breve ficaria em alvoroço, a minha fama de "inteligente" propagou-se como uma nódoa.

Assim quando se dão os acontecimentos revolucionários, no período 1974/1975, eu começo a interessar-me por política, começo a ir a comícios e manifestações, começo a achar que entendo os assuntos e que tenho opiniões, pelo que, sempre que digo qualquer coisa sobre qualquer coisa, lá vem a frase feita "ele é muito inteligente".

Não o diziam com maldade. Nem com ironia. Era mais com um misto de admiração, alguma inveja e uma certa dose de pena. Sim, pena: porque ser "inteligente" era, naquele contexto, não ser "normal".

Naquele contexto, o que interessava eram as competências que faziam das pessoas bons operários. A sua destreza, a sua habilidade, os seus "skills". E os meus "skills", naquele contexto, não serviam para nada. Eram "inteligência".

Claro que, com o decorrer do acelerado processo histórico que então se vivia, com a consciencialização política daquela classe operária, a inteligência (a que servia para mudar o mundo, não aquela que viam em mim) passou a ser mais valorizada. Infelizmente, isso durou pouco tempo. Mas adiante, que se vamos falar sobre isso não saimos daqui hoje.

Ora, toda esta história dos "skills" e da inteligência, acabou por ser útil anos mais tarde. Em 1981, depois de largar o ensino secundário porque achava que não aprendia ali nada que me interessasse, procurei instrução no Centro Cultural de Almada. E encontrei-a.

Aprendizagem ao mesmo tempo técnica, prática, teórica e integrada, abrangendo várias áreas do conhecimento. Aprendizagem que me habilitou a exercer actividades tão díspares como elaborar um cartaz, imprimi-lo, fazer a cobertura fotográfica ou em vídeo de um acontecimento, projectar para uma audiência filmes ou a reportagem que fizera em vídeo, sujar as mãos na serigrafia, organizar um evento, montar tubos, painéis de madeira e toldos para construir o espaço onde esse evento iria decorrer, massacrar furiosamente as teclas de um piano para fazer qualquer coisa parecida com música e depois ajudar a carregar esse piano escada acima para a sala onde, nessa noite, o maestro Victorino d'Almeida iria massacrar furiosamente as teclas desse mesmo piano para fazer música. Etc.

(Foi nesse tempo que defini dois objectivos, não sei já se ambiciosos ou modestos, para a minha vida: conhecer-me a mim próprio e alcançar o que então chamava uma visão global do mundo.)

"Skills"? Inteligência? Mas o que é que isso interessava? Interessava, sim, que estava a adquirir conhecimento e competências, a trabalhar e a divertir-me, assim, sem mais nem menos, experimentando muito sem me especializar em nada. E estava - pequeno pormenor... - a aprender a pensar.

Portanto, quando chega o momento de optar por uma profissão, vi-me com experiência de vida e competências técnicas para escolher entre várias opções possíveis, e com maturidade e esclarecimento suficientes para o fazer sem me arrepender mais tarde. (Obviamente, a conjuntura económica também favorecia essa possibilidade de escolha: depois de anos muito difíceis, estávamos então naquele período de crescimento económico, na transição da década de 1980 para 1990 - crescimento nunca igualado até hoje.)

Escolhi fazer rádio. Na rádio meteram-me a fazer jornalismo.

Aí, toda aquela destreza/rapidez/habilidade das competições de leitura da escola primária voltou, naturalmente e mecanicamente. Saber falar bem e depressa é (ou era) uma condição sine qua non para ser um bom locutor de rádio. Mas, para ser um bom jornalista, é preciso, também, não apenas saber ler bem o texto, mas saber entendê-lo bem.

Ter rapidez de raciocínio, sim, mas também ter clareza de raciocínio. E, acima de tudo isso, não apenas entender os assuntos (muito diversificados) com os quais trabalhamos, mas entender também como se relacionam, e porque são assim e se relacionam assim e não de outra forma qualquer. Chama-se a isso pensamento crítico. Eu chamo-lhe, também, inteligência. E sim, nesse tempo, habilidade e inteligência foram, indissociadamente, vantagem competitiva no mercado profissional.

Tinha razão, a minha professora da primária.

A inteligência não é um amontoado de "skills". No mínimo é a relação dinâmica entre todos eles. Talvez seja, ainda mais, um processo holístico, em que o resultado final é superior à soma das partes.

Não é, de certeza, uma exibição de habilidades circenses.

E quem ensina para desenvolver "skills" esquecendo-se de incentivar o pensamento crítico (e a inteligência emocional, de que não falei, mas que não é menos importante), estará, quando muito e na melhor das hipóteses, a formar bons técnicos, mas de inteligência limitada às funções que é suposto desempenharem. É a minha modestíssima opinião...

Chamam a isso inteligência? Pronto, chamem-lhe o que quiserem. Eu chamo-lhe (porque não?) uma máquina de encher chouriços. Informacionais, talvez. Mas chouriços, na mesma.

sexta-feira, janeiro 11, 2013

O espertinho do costume e a autoridade que não vê

O veiculo Kia de cor cinzenta estacionado em cima do passeio é um dos clientes habituais nesta rua. Mesmo depois de toda a gente aqui já ter entendido que não há necessidade nenhuma de meter o carro em cima do passeio (até porque, ao fazê-lo, estão não só a dificultar a circulação de peões, mas a contribuir para o avançado estado de degradação da calçada), o proprietário deste carro deve achar-se com mais direitos que os outros, ou com algum tipo de impunidade. Porque continua, sistematicamente, a fazer o mesmo.

Um destes dias, aconteceu a situação documentada nas fotos. Um carro da Polícia ficou, durate algum tempo, estacionado atrás do Kia cinzento. Depois foi-se embora sem fazer rigorosamente nada quanto à infracção que tinha testemunhado mesmo à sua frente.

Assim, com estes exemplos de permissividade, não admira que o proprietário daquela viatura continue a fazer pouco dos que são respeitadores e cumpridores. Não admira que continue a sentir-se impune.


Estacionar em cima do passeio é ilegal, de acordo com o artigo 49, alínea f), do Código da Estrada.
http://www.ansr.pt/default.aspx?tabid=256

Ah, e então o que é feito da Ecalma, perguntam vocês? Pois, boa pergunta...