terça-feira, outubro 16, 2018
Fabricando Jair Bolsonaro
texto: Felipe Castelo Branco em Caliban - revista de letras, artes e ideias
imagem: panfletos de apoio à candidatura de Jair Bolsonaro, Brasil, Outubro de 2018
Do antipetismo a Bolsonaro
É inegável que a principal força política de Jair Bolsonaro descende do antipetismo. Grande parte de seus eleitores, quando surgem em sua defesa, em geral empreendem um duplo trabalho: desmentir, relativizar, desconversar ou se apropriar das posições e declarações públicas de seu candidato; e afirmar a urgência de sua eleição contra o PT. Em relação a segunda tarefa, dois termos não tardam em aparecer em socorro ao argumento da ameaça iminente: ‘corrupção’ e ‘comunismo’. Em uma segunda associação imediata, o termo ‘comunismo’ e/ou ‘esquerda’ vincula-se aos dois ícones privilegiados dos eleitores do Messias: ‘Cuba’ e ‘Venezuela’.
A despeito das muitas variáveis que tem se produzido nessas associações, a construção do antipetismo inicialmente se alimentou basicamente apenas do primeiro termo, isto é, da associação entre o Partido dos Trabalhadores e o termo “corrupção”, antes mesmo que as denúncias do chamado “mensalão” tivessem atingido seus altos escalões (as punições, que começam em 2011, em sua primeira fase associavam o PT a um escândalo que atingia diversos partidos), e pelo menos um ano antes do início das operações da chamada “Lava-Jato” (em 2014). O antipetismo surge inicialmente como uma arma mobilizada pelo PSDB para minar as bases políticas da única potência eleitoral efetivamente existente no país, ou seja: Lula. Sua penetração na opinião pública foi gestada especialmente a partir de 2013 e provavelmente visava enfraquecer a força do PT na disputa eleitoral de 2014, mas, acima de tudo, visando gerar seus frutos definitivos nestas eleições de 2018, eliminando o PT da disputa.
O fato é que o poder eleitoral do antipetismo saiu do controle e das mãos do PSDB nos últimos anos, tornando-se a principal alavanca eleitoral da política partidária brasileira. Contrário às expectativas do PSDB, a apropriação do antipetismo, que a partir de 2015 passa a circular entre várias mãos, se mostrou inegavelmente mais eficaz, do ponto de vista eleitoral, pelo seu principal representante hoje: Jair Bolsonaro.
Em sua origem está a imprevisibilidade das manifestações de junho de 2013, que tomou desprevenida a organização do PSDB. Embora as pautas das ruas naquele período fossem diversificadas, a reivindicação central das manifestações orbitava em torno da rejeição ao alto valor do transporte público e da falta de qualidade e alto custo desses serviços. O tema atingia diretamente as políticas dos governos estaduais e como o epicentro dos atos emanava de São Paulo, o PSDB interpretou imediatamente as jornadas de rua como um ataque ao governador Geraldo Alckmin (governador do estado de SP na ocasião). Além de rejeitar a mobilização popular, o PSDB responsabilizou inicialmente o PCdoB pelas ações, diminuindo a importância dos atos e tentando desviar o foco das reivindicações populares para a prefeitura de Fernando Haddad, do PT: “os excessos nas manifestações [tem] um culpado: o prefeito Fernando Haddad, por não cumprir suas próprias promessas de campanha.” (https://www.pragmatismopolitico.com.br/2013/06/juventude-do-psdb-lanca-nota-contra-manifestacoes-em-sp.html).
Dois dias depois de sua primeira declaração pública, quando o movimento assume dimensões nacionais, o PSDB muda de posição e de estratégia, assumindo a inevitabilidade de se pronunciar a favor dos atos públicos (https://www.revistaforum.com.br/juventude-do-psdb-paulistano-volta-atras-sobre-manifestacoes/). Havia se tornado impossível rejeitar a força das jornadas de junho e, ao mesmo tempo, a cúpula PSDBista havia se dado conta de que o movimento não havia sido organizado de forma linear e centralizada e, portanto, pulsava como uma força sem lideranças formais (inclusive partidárias, o que retirava o habitual protagonismo do PT deste tipo de ação popular).
As marchas de 2013 não pertenciam a nenhum partido. Essa, que foi a principal força dos eventos de 2013, fomentou, por outro lado, uma expectativa entre as lideranças PSDBistas em organizar um direcionamento para a força difusa dos atos públicos, cooptando a insatisfação generalizada em direção a um inimigo visível: o governo presidencial PTista. Embora já iniciadas as condenações no caso do mensalão naquele momento, o governo de Dilma Rousseff, durante a primeira metade do ano de 2013, atingia a assombrosa marca de 79% de aprovação (https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2013/03/19/dilma-cni-ibope.htm), e poucos efeitos das manifestações daquele ano haviam respingado sobre sua imagem.
Em 21 de junho de 2013, em um dos momentos mais críticos das jornadas de junho, a direção nacional do PSDB, em carta assinada por Aécio Neves, torna público seu “apoio” às chamadas “manifestações”, afirmando que os atos de rua seriam motivados por “uma aguda crítica à corrupção e à impunidade que persistem na base do sistema político” e denuncia “o oportunismo do alto comando do PT, que tenta se apropriar de um movimento independente, ao determinar que militantes do partido se misturem aos manifestantes com o claro intuito de diluir as cobranças feitas ao governo federal” (http://g1.globo.com/politica/noticia/2013/06/psdb-critica-oportunismo-do-pt-e-diz-que-protestos-miram-corrupcao.html). Naquele momento, a “culpa” pela insatisfação popular se desloca para o PT, somando-se a esse deslocamento a ideia de uma insatisfação popular com a corrupção PTista.
Quem esteve nas ruas sabe que pouco se bradava contra Dilma Rousseff. A insatisfação política era generalizada, mas as reivindicações atacavam acima de tudo os vícios estruturais da política partidária e os grandes gastos com os mega-eventos ainda por vir: a Copa do Mundo, o Pan-Americano e as Olimpíadas. No entanto, o PSDB assume uma tarefa. A tarefa de informar a própria massa que foi às ruas que ela estava sendo enganada. Que seu repúdio à classe política, na verdade, era direcionado ao PT e que o próprio partido, ao marchar nas ruas ao lado dos insatisfeitos com sua base militante, tinha a intenção de desviar a atenção do verdadeiro foco do clamor popular: a relação promíscua entre o PT e a corrupção.
Note-se que apesar da relação entre o PTismo e a corrupção moldar inicialmente a estratégia eleitoral PSDBista, o desdobramento dessa associação imediata é restrito. Nada de comunismo, nenhuma menção a Cuba, tampouco se fala no chamado “centrão” e nenhum dos outros partidos da base política do PT são mencionados. Nem mesmo o PTB, partido de Roberto Jefferson que funciona como gatilho inicial para a chuva de denúncias que deu início ao escândalo do mensalão; ou mesmo o PP, partido da base do PT que é o principal envolvido no escândalo e será o articulador central no futuro “petrolão” (https://g1.globo.com/politica/blog/matheus-leitao/post/2018/04/24/pp-de-ciro-nogueira-e-um-dos-mais-envolvidos-em-investigacoes-como-lava-jato-e-mensalao.ghtml).
A partir daquele momento, a associação entre o nome PT e o termo ‘corrupção’ passa a ser tantas vezes repetida e incentivada nesta estratégia, que mesmo sem ser indiciada ou mesmo investigada no início de 2014, ano em que concorreria a reeleição contra Aécio Neves, a popularidade de Dilma Rousseff cai de 79% para 39%. A estratégia PSDBista (e mais tarde reproduzida pelo próprio Ministério Público) será falar em “organização criminosa” ao referir-se ao Partido dos Trabalhadores, uma maneira de transmitir a ideia sub-reptícia de um plano oculto de corrupção que atingiria, direta ou indiretamente, todos os membros e apoiadores do partido. Embora a ideia de uma organização intentasse manchar a imagem de todos os partidários PTistas, acusados ou não formalmente de corrupção, evitou-se estrategicamente que essa associação ao tema da corrupção se estendesse aos partidos ligados a base política do PT, mesmo que ativamente participantes de seu governo no poder legislativo e nas estatais. Fala-se em “quadrilha”, em uma insinuação de que as ações do alegado “grupo criminoso” envolva todos os membros do Partido dos Trabalhadores, sem atingir nenhum de seus parceiros, aliados ou rivais.
De fato, a estratégia teve êxito. As desfiliações ao PT se produzem em massa, e jamais os membros de partidos como o PTB ou o problemático PP terão sua imagem diretamente manchada. Esse isolamento abstrato do PT foi um dos principais motivadores para a onda de aderências de políticos profissionais ao antipetismo.
Nesta mesma onda surfou o então deputado Jair Bolsonaro.
O candidato a presidência era deputado pelo PTB, sendo base do governo PTista, entre 2003 e 2005, justamente os anos em que o PTB admitidamente participou do esquema do mensalão, segundo relato do próprio presidente do partido, Roberto Jefferson. Mesmo participando do governo do PT, Bolsonaro jamais será associado ao escândalo do mensalão (ao contrário de Lula, que não foi nem mesmo indiciado no escândalo). Ao se desfiliar do PTB, Bolsonaro adere ao PP entre 2005 e 2016. Além de permanecer na base ampla do governo do PT por mais 11 anos, Bolsonaro troca um dos principais agentes do escândalo do mensalão (o PTB) pelo principal envolvido no escândalo do petrolão, o partido que mais recebeu dinheiro da JBS dos irmãos Batista e o partido mais investigado na Lava-Jato, ou seja, o PP (https://brasil.elpais.com/brasil/2018/04/24/politica/1524605415_828915.html?id_externo_promo=enviar_email). Ainda assim, a imagem de Bolsonaro será muito habilmente afastada do imbróglio, tanto de seu vínculo aos escândalos do mensalão e petrolão, quanto de seu vínculo com o próprio PT, que ele chega a apoiar publicamente em diversos de seus discursos (https://www.youtube.com/watch?v=1Nqrsmt980E).
Por que a estratégia de construção de um antipetismo parecia útil ao PSDB como principal oposição eleitoral ao PT? Afinal, não seria um risco para o próprio PSDB se queimar na centelha acesa do discurso da associação entre ‘corrupção’ e PT? A resposta é sim. No entanto, os riscos da estratégia poderiam ser compensados no tempo da colheita dos frutos prometidos. A estratégia PSDBista apostava na despolitização da disputa eleitoral, na medida em que insistir no embate político e na aposta privatista dos tucanos havia levado o partido a derrota em pelo menos três disputas eleitorais nacionais, até aquele momento. O fato é que, por mais grave que seja, o tema da corrupção é uma ferramenta importante de despolitização de qualquer debate.
O discurso anticorrupção se produz na generalidade. Ao alimentar a suspeita da corrupçãocomo motivador político oculto, legitima-se um debate que desconsidera números, conjuturas internacionais, posições políticas. O cenário político se transforma em massa amorfa, indiferente às nuances específicas que são fundamentais a política partidária. Com seu forte apelo moral, a ideia de corrupção desconsidera indiciados, réus, condenados e absolvidos. Desconsidera, inclusive, o respeito a ritos da normatividade jurídica. A anticorrupção é frequentemente punitivista. E o punitivismo mobiliza o mais eleitoreiro dos afetos, o ódio.
Dispensando o recurso a números ou a análise concreta dos fenômenos políticos, o discurso anticorrupção mobiliza a boa intenção moral e em troca produz seus monstros. É da massa amorfa do “todos os políticos são iguais” que um traço de distinção promete criar um destaque personalista que torne possível uma nova figura elegível. A eleição retornaria a uma espécie de “grau zero” da disputa, na dependência de quem se sair melhor no discurso do “combater tudo que está aí”. Eis a primeira aposta do antipetismo. Eis a aposta
do PMDB naquele momento.
Eis a fórmula que fabricou Bolsonaro.
texto completo em
https://revistacaliban.net/fabricando-jair-bolsonaro-f0956e865daa
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