Eis um texto da escritora Luísa Costa Gomes, publicado há 10 anos na revista Notícias Magazine. Para pensar: o que aprendemos, ou desaprendemos, no espaço de uma década, depois de termos sido devidamente alertados?
Nem é preciso estar a chamar outra vez a atenção para o tema, porque todos sabemos que a violência e o espectáculo da violência são inevitáveis. Parece que nunca houve na História tantas coisas inevitáveis. São as tais coisas que são mesmo assim, como a miséria, a guerra, a doença, a injustiça, a morte - factos da vida natural. É, portanto, um daqueles temas que suscitam uma primeira indignação e depois um encolher de ombros, diante do permanente caldo de pornografia e tiros avulsos, já a caminho de se tornar banal. Não se pode dizer nada contra, não é chique. É moralismo. E todos sabemos que o moralismo é sempre bacoco. Talvez tenhamos, enquanto sociedade, uma curiosidade laboratorial de saber o que vai sair daqui? Como é que as gerações vão sobreviver emocionalmente? Como é que os miúdos, que as gerações responsáveis não sabem, nem querem, nem têm a coragem moral de proteger, se hão-de couraçar por dentro contra a brutalidade que lhes entra constantemente pelos olhos?
Impotentes diante do que nos despejam dentro de casa: concursos e séries e programas baixos e baratos. E o mais barato é o pontapé. O pontapé é que rende. Psicólogos trabalham para nos convencer de que, no fundo, somos todos bastante maus e gostamos de ver gente a apanhar pancada e que quanto mais depressa o assumirmos e nos desculpabilizarmos em relação a esses impulsos naturais (perdoarmo-nos a nós próprios é a expressão canónica), mais depressa andaremos felizes e descontraídos. Sociólogos, por esta vez, concordam com psicólogos. O espectáculo da violência e a glorificação do murro não fazem mal a ninguém, até porque é comummente sabido que as crianças são burras e não têm mecanismos de identificação e de imitação e não percebem a moral dos programas em que se encoraja a resolver os problemas todos recorrendo ao argumento da força bruta. O espectáculo da violência serve apenas, dizem - diziam, que há agora já vozes tímidas discordantes - e comprovam com estudos estatísticos feitos na América, para uma saudável catarse colectiva, espécie de terapia social, em que os pobres e desvalidos, pelo menos em fantasia, atiram sobre os ricos e poderosos, ou quem quer que lhes passe diante da mira. Hoje, alguns começam a pôr em causa esta teoria que dominou, de forma paternalista, as décadas anteriores.
Há ainda cândidos que imaginam que é possível desligar a televisão, que aquilo a que fechamos a porta não nos entra pela janela. Que é possível não ver filmes, não comprar jogos de vídeo, manter-se alheado e puro, longe de uma realidade que é formatada pelos parâmetros mediáticos em que a violência reina suprema. Atiramos todas estas coisas para cima dos miúdos, esperamos talvez que eles tenham uma força que nos falta. Dizem que o aparelho de televisão traz um botão de ligar e desligar. Ainda não dei por ele. Pelo contrário. Quanto menos televisão se quer ver, menos aparelhos de televisão se quer ter, mais eles arranjam forma de se multiplicarem e de povoarem a casa toda. Nunca chegam. São permanente objecto de discórdia. Não dizia alguém que se reconhece a estrutura duma família quando se sabe quem comanda o comando da televisão? Mas nunca chegam os ecrãs, os canais, os programas. A gente desune-se nas escolhas. Vai cada um para o seu canto comportar-se à maneira da sua fatia de público-alvo. Até em si mesmo, o espectador encontra-se o mais das vezes dividido. A sua melhor parte quer ver um programa interessantíssimo sobre os Romanos e a parte pior puxa-o para uma série americana de piada fácil e risos pré-fabricados. Não resiste, porque havia de resistir? Trata-se de entretenimento, a televisão não faz pedagogia. A não ser a da instauração da dependência em relação ao entretenimento. Ou seja, da reconfirmação do domínio da violência.
Luísa Costa Gomes
Texto publicado na revista Notícias Magazine
em 19 de Maio de 2002