terça-feira, março 25, 2008

A velha vai cair? E depois, quem, a substitui?


Para os visitantes que não são de cá, começo por esclarecer já o seguinte: aqui há uns dias, este pacato Portugal foi surpreendido com a divulgação nas televisões de um vídeo que já circulava na Internet, mostrando uma professora do ensino secundário (senhora de uns 60 anos) a ser injuriada por uma aluna de 15. E tudo por causa de um telemóvel – objecto cuja utilização supostamente não é permitida nas salas de aula portuguesas.

A jovenzinha, perfeitamente histérica, agarrava-se à professora berrando-lhe «dá-me o telemóvel! Dá-me o telemóvel já!».

E o resto da turma divertia-se à brava com o acontecimento, e alguns alunos (principalmente o que gravava as imagens – com um telemóvel, curiosamente – mas não só ele) até incentivavam a que a “luta” prosseguisse – como se estivessem não numa sala de aula, mas numa arena a assistir a um espectáculo de “wrestling” (embora, aqui, nem se tratasse de um combate, uma vez que a desproporção de forças era tão evidente, que a única coisa que seria de esperar era a humilhação de alguém… neste caso, da professora – algo que não acontece no “wrestling”, não é… hããããã?...)

Beeeem… Antes que alguns de vocês comecem a berrar-me aos ouvidos porque eu sou um moralista e “um menino” (é isso que costuma acontecer sempre que eu aqui me refiro a essa palhaçada sangrenta copiada pelos americanos a partir das lutas de gladiadores do império romano), deixem-me que vos diga que eu até entendo que o conflito seja uma coisa interessante.

Os conflitos (e a resolução dos conflitos, de forma que pode ser mais ou menos violenta, mas raramente pacífica) são, como se sabe, o alimento de quase toda a literatura e de quase toda a arte dramática que enforma a nossa civilização.

Brutalidade, selvajaria, lutas…desde os relatos míticos primordiais (o Antigo Testamento proporciona abundantes exemplos), passando pelas fundamentais Ilíada e Odisseia, por clássicos como o Hamlet, até às obras-primas do cinema contemporâneo – o conflito, e as formas de o resolver, são a matéria-prima e o fundamento dessas realizações humanas.

E porquê? Porque o conflito (ou melhor, as suas representações) não serve apenas de “catarse”, ou de alívio para as tensões que criamos nos nossos relacionamentos – o conflito (as suas representações) é educativo!

Vendo como outros (grupos, ou pessoas) resolvem (a bem ou a mal) as suas divergências, esperamos aprender alguma coisa – aprender a não cometer os mesmos erros (e isso é mais importante que apenas esperar que “aquilo não aconteça connosco”).

Isto funcionou, na construção da civilização em que vivemos, até há bem pouco tempo.

Claro que o simples espectáculo da humilhação pública do “próximo” esteve sempre presente – mas era algo anormal, como um acidente de viação.

Ora, o que se passa agora, neste tempo de retrocesso civilizacional, em que tudo se reduz ao “espectáculo” (e, de preferência, espectáculo televisionado, ou “postado” no Youtube) é que esse tipo de coisas “anormais” passou a ser algo a que nós não apenas nos habituámos, como, cada vez mais, desejamos para condimentar a nossa vidinha chata e frustrante. Não tentamos fazer coisas que nos realizem enquento indivíduos, para que a nossa vidinha deixe de ser chata e frustrante: apenas queremos espectáculo, para que a nossa vidinha pareça menos chata e frustrante. (Chamem-me moralista, se quiserem… e depois fiquem surpreendidos quando virem casos ainda piores… O que, aliás, será inevitável se continuarmos nesta alegre alarvidade.)

Mas eu dou-vos um exemplo.




Aqui há uns dias, em Almada, vi um acidente de carro: um condutor enfiou o seu automóvel contra um semáforo, na Praça São João Baptista.
Ora, como é de esperar (e como é natural, visto tratar-se de uma anormalidade que surge de repente no quotidiano), juntou-se um grupo de “mirones” para observar o espectáculo.
Claro que eu também lá fui. Tenho curiosidade, como toda a gente.

Mas o que vi deixou-me espantado (aliás, isso é que me deixou espantado, não o vídeo que deu o pretexto para esta crónica).

E vi o quê?

Bem, como hei-de explicar?

No grupo de espectadores, havia os que observavam de maneira mais ou menos interessada, ou mais ou menos desinteressada; havia os que demonstravam a habitual “compaixão” com a “vítima” (o condutor que, de resto, parecia mais assustado com o que lhe acontecera, mas não muito “aleijado”) – e isso (mostrar “compaixão”) também é natural porque, quanto mais não seja, ajuda a que as pessoas “condoídas” se sintam um bocadinho melhor consigo próprias…

Mas havia também outro grupo, de jovens para aí com vinte e poucos anos (está bem, eram a minoria…) que observava o condutor encarcerado, olhando para a cara do homem, com evidente gozo. Não sei se estão a imaginar, mas era um olhar “guloso”, um olhar de prazer. Um esgar que eu conheço bem, porque também conheço alguns filhos da puta – desculpem lá a expressão, mas não encontrei outra mais adequada – que gostam de se divertir com a humilhação dos outros… mesmo que não conheçam, de lado nenhum, esses outros (se conhecessem, ainda poderia existir alguma explicação que não fosse do foro patológico).

Ora bem: eu, na ocasião, não consegui entender qual era a piada. E ainda hoje não consigo.

Parece-me muito preocupante ver que um simples acidente de viação já não é apenas o tal “escape” para a realidade “chata” do quotidiano – é motivo de troça! Mas porquê?

Se chegámos a um ponto da nossa História (enquanto Humanidade, entenda-se) em que a única coisa que conta é o imediatismo, a piada fácil, o deixa andar, o olha o gajo todo partido que giro deixa cá aproveitar antes que me aconteça o mesmo a mim, ó gorda sai da frente que eu quero filmar, não te metas que isto vai dar “fight”, etc etc etc – mas só isto e mais nada… como querem vocês que eu me admire quando vejo coisas como a que vi (vimos) acontecer numa sala de aula portuguesa?

Claro que é fácil deitar a culpa (em exclusivo) para cima daqueles jovens, que se comportaram como perfeitos imbecis – e meter a cabeça na areia, assobiar para o lado, deixar andar, e essas coisas todas.

Só que, se não olharmos para nós próprios e para a sociedade em que vivemos e da qual somos construtores e cúmplices, bem podemos (como se dizia no meu tempo) fiarmo-nos na virgem e não correr.

E, se continuarmos sem fazer nada, teremos todos um belo futuro: quando a “velha cair”, cairemos todos com ela!

4 comentários:

Luis Eme disse...

Eu nem sei o que dizer... o mundo encheu-se destes "espectáculos" e destes "espectadores", Vitorino...

Claro que a culpa não é sou da tv ou do you tube...

E depois há os tais filhos da puta (parece que cada vez são mais...), que só estão bem com o mal dos outros...

Debaixo do Bulcão disse...

Luís:

Como deves ter entenddo, eu não disse, nem digo, que a culpa seja da TV ou do Youtube. Aliás, gosto muito de TV enquanto meio de comunicação e até tenho um canal no Youtube.

Mas que anda por aí (nesses media) muita "normalização" de coisas que não me parecem nada normais, lá isso anda.

Vê, por exemplo, um vídeo feito por putos aqui de Almada, em que eles também se comportam como perfeitos atrasados mentais.

Aviso já que é uma situação bem mais degradante que a da escola Carolina Michaelis.

Aqui:

www.youtube.com/watch?v=zXODTDc8auU

Debaixo do Bulcão disse...

E, a propósito de tudo isto: se vão responsabilizar a jovem (que se "limitou" a reagir de maneira inadequada, e a quente) porque não se responsabiliza também os alunos que incentivaram a situação (e que, esses sim, tinham maneira de evitar que o caso desse naquilo que deu - já que não estavam directamente envolvidos)?

E os pais da aluna (e dos outros alunos), não deviam ser também alvo de investigação, por estarem a criar meninos daquele quilate?

É que todos nós podemos, em determinadas circunstâncias, "perder a cabeça" e fazer asneiras das quais mais tarde nos arrependemos (acredito que seja esse o caso da tal jovem).

Mas, e os outros? Safam-se? Vai ser, só ela, o "bode expiatório" parea toda esta má educação?

Madalena Barranco disse...

Olá António! Ah, que fatos tristes e que me fazem pensar na degeneração do amor fraterno... Conflitos? Sim, eles sempre existiram e têm o lado positivo, quando deles se tira um aprendizado. No entanto, me assusta a forma como os jovens se "defendem" atacando de forma bruta, quando deveriam lutar com a inteligência. Beijos e bom domingo - gosto do seu ponto de vista!